- Cultura 20.jul.2018
Em “Ilha dos Cachorros”, Wes Anderson se propõe ao exercício estético puro e simples
Espécie de homenagem à cultura japonesa ao modo do diretor, animação em stop-motion sofre para escapar de um apelo visual mais imediato
Nos créditos finais de seu mais novo trabalho, “Ilha dos Cachorros”, Wes Anderson agradece entre outros o cineasta Brian De Palma, famoso diretor estadunidense que foi um dos principais nomes do cinema do país nos anos 80 e 90. A menção é curiosa, mas não deixa de ser lógica se considerar apenas a maneira como o realizador encena a história de sua nova animação: ainda que esteja distante do teor mais provocativo do cinema de De Palma, a produção adota aqui um rigor estético cujo controle é muito parecido com o adotado pelo diretor que por muito tempo foi chamado de “novo Hitchcock” – a famosa divisão da tela em dois espaços que marcou obras como “Irmãs Diabólicas” e um “Um Tiro na Noite”, por exemplo, é emulada repetidas vezes aqui.
É também desta posição tão firme sobre o visual que o filme estabelece como sua diretriz primária e central da narrativa, uma que embora muito condizente com a trajetória de seu realizador não demora a soar como um exercício de proposta atípico de sua trajetória. Se Anderson firmou sua fama perante o público sob a imagem do cineasta calculista em todos os aspectos visuais e tenha mantido esta impressão ao longo dos anos, é neste nono longa-metragem de sua carreira que ele leva sua reputação a um limite bastante claro de exagero estílico, intensificando sua metodologia cartunesca ao ponto do quase pictórico. Em “Ilha dos Cachorros”, o visual impera sobre todas as outras partes, em um raciocínio criativo que por vezes parece estar muito mais próxima ao do design que do cinematográfico.
Tudo no filme, afinal, existe primeiro para um deleite imagético que é particular ao cineasta antes de existir como um componente fundamental à história ou a narrativa. Ambientado num Japão futurístico e distópico onde poderosos resolvem criar uma lei para expulsar os cachorros do país – exilando-os em uma verdadeira ilha-lixão sob a alegação de uma gripe canina mortal – e encenado sob a premissa básica de um garoto atrás de seu amado animal de estimação, o longa simplifica todas e quaisquer questões relativas ao roteiro (que embora tenha sido bolado por quatro pessoas é assinado somente por Anderson) exatamente porque sua atenção não mora nem por um instante nos pormenores da trama, mas sim na forma como ele vai ser traduzido para a telona sob o olhar pitoresco de seu diretor. Dentro da estrutura, este interesse talvez esteja melhor resumido em um momento já próximo do final, quando é revelado sob as vias da piada discreta que o percurso complexo feito pelos personagens tinha sido até então o de uma linha reta literal.
Neste sentido, a animação em stop-motion é sem dúvida a principal ferramenta usada por Anderson para atingir seus objetivos, pois ela permite este maior controle narrativo para manipular espaços de cena com a mesma precisão com a qual ele normalmente registra a ação dos personagens. Sua aplicação, porém, se distingue de outras dentro da carreira do cineasta porque ela predomina no longa como único ponto de interesse genuíno do diretor, existindo como ponto de encontro a diversas referências imagéticas que ele busca agregar e combinar na história – uma cuja origem é primordialmente da cultura japonesa, feita em um caráter tão aleatório que se distancia de uma homenagem mais coesa a quaisquer movimentos específicos do país.
É talvez por conta disso que a comparação de “Ilha dos Cachorros” com os típicos filmes-reverência americanos à produção japonesa – como o “Speed Racer” das Wachowski, o “Kong – Ilha da Caveira” de Jordan Vogt-Roberts ou mesmo o “Death Note” de Adam Wingard – soa tão absurda aos olhos de qualquer pessoa, mesmo que exista uma coincidência neste ponto de partida. Enquanto estes projetos se aventuram por esta cultura com um direcionamento muito específico dentro dela, a abordagem de Anderson se pulveriza diante de inúmeros motifs visuais, cuja origem vai do anime até a música tradicional histórica daquela nação e passa por idos do cinema de Yasujirô Ozu (o bar montado pela produção é disposto no plano de forma idêntica ao do cineasta) e até lutas de sumô. É uma questão de ritmo e composição, não de olhar nostálgico.
Tudo no filme existe primeiro para um deleite imagético do cineasta antes de existir como componente da história
Se esta dedicação fervorosa à formatação do longa pode por um lado ser muito desgastante (até porque este duelo entre conteúdo e forma é no fundo desnecessário), ela acaba bastando à produção por conta do olhar tão anômalo que seu diretor emprega dentro deste verdadeiro mar de influências de origens tão díspares, um o qual ele carrega e interpreta de formas inesperadas. Por mais que a animação se arrisque seguidas vezes pelo perigoso campo da apropriação cultural (em especial quando envolve na trama o núcleo da estudante de intercâmbio e líder da revolução, dublada no original por Greta Gerwig), seu desfile de referências está longe de ser uma homenagem desconjuntada porque ela ainda se filia à fábula infantil que Anderson de um jeito ou de outro sempre repete em seus projetos, estando pontuada de forma clara no desenvolvimento das relações entre humanos e cachorros da história. Alinhado ao seu tradicional humor cáustico, esta estruturação maior da trama volta a impedir que o diretor se perca em sandices e o mantenha atrelado às suas costumeiras morais edificantes, uma os quais a essa altura ele parece fadado a retornar mesmo nos cenários mais difíceis.
Tamanha dependência de Anderson aos meandros do conto infantil, porém, nunca deixam de compor um choque temático com suas influências (De Palma, de novo, de otimista tem nada), uma medida que se em seus melhores trabalhos ajuda a nortear o drama, nos mais inconstantes ela acaba ajudando a ressaltar a palidez do todo. No caso de “Ilha dos Cachorros” quem se manifesta é a segunda opção, com o aparente minimalismo narrativo do filme muitas vezes se confundindo com a simplicidade de roteiro em uma combinação que ora ou outra é frustrante – seja na linha reta traçada pelos protagonistas em grande parte da história, na ausência de um drama que mantenha o conflito aceso na trama ou mesmo no ato preguiçoso de colocar Yoko Ono para dublar uma cientista chamada Yoko.
O minimalismo narrativo do filme muitas vezes se confunde com a simplicidade da história, uma combinação que ora ou outra é frustrante
Isso não quer dizer, entretanto, que “Ilha dos Cachorros” seja um filme vazio, mas que sua opção hercúlea por privilegiar o lado imagético como único motor narrativo em detrimento de uma melhor elaboração sobre seus temas o esvazia de uma força emocional maior. O que talvez desvende melhor esta posição um tanto dúbia do longa é sua comparação com “O Fantástico Sr. Raposo”, a outra incursão de Anderson pela animação stop-motion: se ambos se apoiam na técnica para obter um maior controle narrativo, a adaptação do livro de Robert Dahl funcionava melhor porque havia um interesse do diretor pelos pormenores da história e sua significação, ainda mais por conta das morais punitivas e duvidosas propostas pelo autor na obra original que contrastavam com o idealismo do cineasta.
Já para a história dos cachorros o sentimento que fica é o de um experimento deixado pela metade, no fim tocado no piloto automático porque ele não ofereceu a seu realizador desenvolvimentos mais interessantes e aguçados. Se para outros cineastas este desenrolar melancólico muito provavelmente resultaria num filme apático e difícil de ser assistido até o fim, para Anderson esta frustração ainda pode ser contornada com alguma tranquilidade porque ela não exclui da mesa de trabalho sua imensa criatividade visual, algo que junto do caráter fabular é no fundo o que há de mais essencial a seu cinema e, portanto, aos seus fãs mais ardorosos.