Mergulhado no íntimo, “Nasce Uma Estrela” procura a paixão para sobreviver a um mundo de imagens

Mergulhado no íntimo, “Nasce Uma Estrela” procura a paixão para sobreviver a um mundo de imagens

Nova versão do clássico hollywoodiano se despe da necessidade de ser um “retrato” da indústria e materializa uma experiência agonizante de desencanto com o sistema

por Pedro Strazza

Independente da versão, existe certa incoerência na ideia de categorizar “Nasce Uma Estrela” como uma produção que faz a crítica a Hollywood e o showbiz. Uma das verdadeiras clássicas histórias hollywoodianas que os estúdios de tempos em tempos ressuscitam, a produção sobre o relacionamento de uma jovem em meteórica ascensão profissional com um veterano com a carreira em ruínas pode trafegar pelos bastidores da indústria com um olhar mais apurado sobre as relações ardilosas que a permeiam, é verdade, mas nunca deixou de conter certo deslumbre na hora de materializar nas telas este cenário e as possibilidades de sucesso do tal do sonho americano do qual este sistema de estrelas continuamente se retroalimenta. Tanto que apesar de toda a tragédia por trás do desfecho, a atribuição imediata feita ao projeto nunca se relaciona com obras como “Crepúsculo dos Deuses” ou “A Malvada” – aí sim comentários ácidos ao ambiente no qual se inserem – mas sim a um jogo de estrelato envolvendo os atores e atrizes escolhidos para viver os papéis principais.

Não é à toa, então, que no decorrer de suas quatro versões a história tenha sido reconfigurada (ou deturpada, aos olhos mais pessimistas) ao status de “vanity project”, um exercício de egolatria cujo ápice é bem demarcado na terceira encarnação da trama estrelada por Barbra Streisand. Da ingenuidade bem intencionada dos filmes de William A. Wellman e George Cukor de 1937 e 1954 respectivamente, o “Nasce Uma Estrela” de 1976 era uma espécie de coadjuvante em si mesmo para a figura então gigantesca da cantora, encolhido a ponto de ver seu cenário transposto de Hollywood para a cena musical da década enquanto suas batidas emocionais tão consagradas foram eliminadas e escolhidas a dedo por Streisand, da mesma forma com a qual ela selecionou de seu guarda-roupa os figurinos que usaria na produção.

É justo deste gesto um tanto iconoclasta e mal intencionado do longa da cantora, porém, que parte o remake da história de 2018, enfim despido de certos comprometimentos temáticos para as outras gerações e com sua nova equipe criativa livre para se concentrar naquilo que de fato lhe interessa em suas estruturas de um ponto de vista artístico. Em seu debute como diretor – alcançado poucos meses depois de ter entrado no elenco e ver Beyoncé e Clint Eastwood saírem do projeto – Bradley Cooper assume as rédeas desta terceira versão da produção sob as mesmas condições egocêntricas que no geral norteiam essas primeiras incursões de celebridades no comando, mas sua execução revela um algo a mais que nem todos estes atores e atrizes consagrados pelo sistema possuem ao se arriscarem na direção de um filme.

Bradley Cooper e o diretor de fotografia Matthew Libatique no set

Isso porque ainda que mantenha um interesse claro de centralizar todas as atenções para sua figura (o longa é conduzido quase que inteiramente pela perspectiva do personagem vivido pelo ator, afinal), o diretor toca o quarto “Nasce Uma Estrela” menos atento às trajetórias percorridas pelos dois protagonistas – e na tragédia a ser desenrolada no clímax – que no jogo íntimo desenvolvido entre o astro Jackson Maine (Cooper) e a aspirante Ally (Lady Gaga), avatares da vez da trama que se apaixonam depois de se encontrarem na noite por acaso, graças ao desejo do rockstar de sair do hotel à procura de uma garrafa de uísque. Embora preserve o essencial da trama, o roteiro escrito por Eric Roth, Will Fetters e o próprio Cooper não demora a fugir da necessidade de um retrato acurado da ascensão da cantora para se concentrar na relação entre os dois – os shows são na prática periféricos, restritos no filme aos números musicais que servem para elucidar os pontos de crise e catarse do percurso de seus dois amantes.

São poucos os momentos, vale dizer, em que a câmera abandona a posição dos bastidores pela do espectador dos concertos da dupla, mantendo sempre um jogo de aproximações que se mantém rente ao corpo e rosto dos dois personagens em busca do mínimo sinal de reação transmitida pela performance dos atores. Para Matthew Libatique, diretor de fotografia do projeto e parceiro habitual de Darren Aronofsky, esta proposta se traduz em uma oportunidade de ouro de capturar as mais variadas texturas nos rostos dos artistas nos vários momentos de close, mas a Cooper esta opção tem propósito claro de situar o espectador em uma perspectiva mais emocional: dentro de uma verdadeira cosmologia de dramas que se manifestam no universo do filme, os únicos que importam ao cineasta estão ligados diretamente com o microcosmo do relacionamento vivido pelos dois protagonistas.

Na prática, porém, a relação entre Ally e Jackson é muito mais potente pela forma como ela é construída na narrativa. Atento à espiral de crise que há de se desenrolar em seu personagem, Cooper faz do primeiro ato inteiro um grande estabelecimento da paixão dos dois protagonistas não apenas para trazer o público para dentro deste especto emocional, mas também para montar uma referência a toda a derrocada que vem posteriormente. O amor dos dois artistas manifestado no início, de certa forma, aos poucos há de se converter em memória nos outros dois terços do filme, uma medida que amplifica o peso do golpe emocional a ser desferido pela história.

De um universo de dramas, os únicos que importam estão ligados diretamente com o microcosmo dos protagonistas

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Dada esta proposta, é importante observar que das pequenas mudanças feitas pelo roteiro deste novo “Nasce Uma Estrela” a mais fundamental de todas talvez seja a inversão da relação entre o alcoolismo e a depressão no perfil de Jackson Maine. Se nas outras três versões era o álcool que alimentava sozinho a curva descendente da carreira do cantor (ou ator, nomeado Norman Maine em 37 e 54), a quarta assume o quadro clínico por trás de sua síndrome auto-destrutiva tanto por uma questão de contexto quanto de subtexto, posicionando-se à partir da metade na perspectiva do artista para traduzir na tela o cenário opressivo que o leva ao suicídio.

Existem duas ramificações inesperadas dentro desta decisão, sendo a primeira e mais importante a que, dos quatro filmes, a tragédia final do longa de Cooper é de longe a menos relacionada com a oposição de sua derrota com o triunfo da mulher – tanto que a cerimônia de premiação, nos outros tão usada para refletir o desgosto de Maine perante a hipocrisia do sistema, aqui só surge para acentuar sua humilhação. A crise, aqui, vem do desgosto proveniente de uma tomada de consciência, conforme Jackson vai vendo sua carreira minguar enquanto é forçado a assistir a rendição de Ally ao “sistema” e um jogo de superficialidades que ao seu ver destrói o potencial visto na amante.

Se por um lado esta medida ressalta certos preconceitos da visão do diretor – a discussão sobre a “popfobia” do longa já vem rolando nos Estados Unidos desde o lançamento no circuito – a ideia de mergulhar a narrativa no campo do falso gera uma espécie de estrutura díptica no filme que fortalece tudo que é mostrado nos primeiros 45 minutos e ao mesmo tempo acentua as dores e pesares de todos os atos seguintes a eles. Cooper, dentro disso, demonstra saber muito bem como jogar com esta divisão enquanto diretor, seja no gesto irônico da descoberta de Ally por Jackson ser feita em um clube de drag queens (cujas apresentações de lip sync são tomadas como performances “mais verdadeiras” que os shows pirotécnicos das grandes estrelas aos quais tomam inspiração) quanto na decisão de retornar a climática apresentação de “Shallow”, apoteose do primeiro ato, em uma gravação feita pelo celular que não mostra o mesmo brilho do momento.

O filme assume a depressão por trás da síndrome auto-destrutiva de Jackson para fins de contexto e de subtexto

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Já a segunda ramificação (e a mais subtextual) mora na centralização que Cooper aplica a seu papel ao priorizar o arco de seu personagem em detrimento do equilíbrio das trajetórias simultâneas do casal, uma dinâmica ególatra que gera uma duplicidade um tanto interessante de ser analisada. Pois por mais que o diretor se aproveite da posição recém-adquirida de ator/diretor e estruture o filme de forma a privilegiar e impulsionar o seu trabalho de atuação no projeto, ele não segue o caminho de Streisand e permite que seu lado de performer tome conta do palco, preferindo alimentar a espiral de destruição ao qual ele se vê desempenhando.

O resultado, no mínimo, é forte de se assistir: existe um reflexo muito nítido de Cooper em Maine, um que ele executa não só com uma auto-consciência das mais amargurantes mas que também contamina o resto do elenco da produção. E além dos óbvios paralelos traçados pelos fãs entre as carreiras de Ally e Gaga (que aqui vive a personagem nesta mesma sintonia energizante de processar os demônios interiores), os personagens de Sam Elliott e Dave Chapelle repercutem ou aliviam esta dinâmica para além da relação do casal de uma forma um tanto fantasmagórica – o primeiro em especial, cujo papel de irmão mais velho desvincula o desconforto crescente de Jackson da trajetória de Ally e revela uma origem a toda a fragmentação da personalidade do cantor.

É justo esta auto-consciência da direção do ator que ajuda este “Nasce Uma Estrela” a escapar de uma condição de falso reflexo da indústria para se firmar como uma experiência sensorial de intimidades. Por mais que Cooper se renda a decisões mais arriscadas à partir do fim da ascensão e o começo da decadência – são inegáveis os momentos de arrasto da narrativa em meados do segundo ato – e em nenhum momento ceda o exercício de ego intrínseco a todo o projeto, seu cuidado para materializar dores e processá-las sem dúvida o aproxima dos atores que fizeram transições similares para a direção com altíssimo nível de talento (além de Clint, Paul Newman é um nome que me vem à mente nestas comparações), na mesma intensidade com que o remake se individualiza dentro do trajeto histórico do clássico hollywoodiano com uma potência nunca antes imaginada.

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