Mostra São Paulo: Paul Dano ensaia drama de proposta forte e execução dissipante em “Vida Selvagem”
Imagem: Wildlife – Still 1

Mostra São Paulo: Paul Dano ensaia drama de proposta forte e execução dissipante em “Vida Selvagem”

Estreia do ator na direção é marcada por análise da classe média norte-americana dos anos 60 e forte dependência no elenco para materializar crise doméstica

por Pedro Strazza

Ainda que o autor não seja tão conhecido fora do cenário literário, não é lá muito difícil entender o que levou Paul Dano a ver na adaptação de um livro de Richard Ford um projeto ideal para realizar sua estreia na direção. Acostumado a papéis de personagens quebrados que trafegam muito próximo (quando não adeptos) da desvirtuosidade, o ator sempre carregou em suas performances o desmonte como ponto de partida – seja sob personagens regidos pela internalização como o filho mais velho de “Pequena Miss Sunshine” ou aqueles entregues a este processo pelas vias exteriores como o do padre de “Sangue Negro” – uma característica que coincide em muitos pontos com a estrutura das histórias do escritor, conhecido justamente pelos retratos de desmantelamento de instituições concebidas pela sociedade.

No caso de “Vida Selvagem”, o rompimento é em cima dos valores tradicionais pertencentes ao casamento e (em especial) à família, duas construções sociais cujas instabilidades no filme são pintadas por Dano pelo viés mais puro da tensão do indivíduo com seu dever comunitário. A trama, afinal, segue uma crise de relações pautada por uma ausência de adequação dentro da hierarquia, acompanhando o afastamento emocional do casal formado por Jerry (Jake Gyllenhaal) e Jeanette (Carey Mulligan) à partir do momento que o primeiro perde o emprego menor num resort de golfe e passa a questionar os caminhos profissionais tomados. É uma tomada de consciência do lugar ocupado, porém, que não será desempenhada em um aspecto externalizante ou de uma inconformação revolucionária, mas sim pelas vias do íntimo: depois de passar meses desempregado e ver a esposa e o filho Joe (Ed Oxenbould) assumirem serviços de meio-período para pagar as contas, Jerry resolve aceitar um emprego fora da cidade, ajudando no combate aos incêndios florestais da região do estado de Montana.

Paul Dano (acima) com Jake Gyllenhaal no set

É a partir deste afastamento físico do marido que a trama do longa realmente é posta em movimento, mas o roteiro escrito pelo diretor e a companheira Zoe Kazan já se interessa por ações por trás da dinâmica do casal que acontecem antes desta decisão tomada no impulso pelo personagem. Além de fortalecer a proposta íntima, o filme assume a perspectiva do filho quase que inteiramente como sua para fazer esta aproximação dos dramas entre Jerry e Jeanette em caráter gradual, enxergando os conflitos a princípio de longe para depois chegar mais perto e criar à partir disso um ato de revelação da inevitabilidade do desmanche do relacionamento, feito através do estabelecimento e crescimento de bases antagônicas nas duas partes.

Mas que bases tão distintas são essas que separam os dois personagens, afinal? A resposta para esta pergunta, pelo menos aos olhos do diretor, mora numa questão de propósitos, algo muito relacionado ao cenário geracional dos baby boomers – ao qual ambos pertencem – e sua relação com a ordem social norte-americana da época. Jovens e dotados da responsabilidade familiar muito cedo, tanto Jerry quanto Jeanette almejam a falsa idealização do crescimento econômico e de status que o sonho americano promete, mas veem o desejo limitado pela rigidez estrutural que afasta (e enaltece) a elite dos menos afortunados. Resta aos dois, então, traduzir esta frustração com o conformismo em uma terceira via, e é justo neste conflito emocional onde mora o filme de Dano.

O filme assume a perspectiva do filho para fazer a aproximação dos dramas entre Jerry e Jeanette em caráter gradual

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Não é um interesse, porém, que vá ser desenvolvido de forma igual aos dois lados, ainda mais porque este desconforto tem níveis de complexidade distintos. Se a “fuga” de Jerry para o corpo de bombeiros é reduzida ao essencial, traduzido numa busca por adrenalina para criar certa sensação de completude existencial, a aflição interna de Jeanette é expandida de forma a não cair em becos sem saída de estereotipações ou más concepções; Dano trabalha muito próximo de Mulligan para dar espaço ao sofrimento interiorizado da dona de casa, que ao voltar ao mercado de emprego por uma necessidade familiar também volta a entrar em contato com próprios desejos individuais, sejam eles a ambição de ascender às classe mais ricas (todo o caso que ela tem com o divorciado milionário da cidade, vivido por Bill Camp, passa por isso) ou de retomar a si o controle de seu destino. “Seus pais já existiam antes de você nascer” a mãe diz ao filho em determinado momento de uma conversa num restaurante à beira da estrada e depois de revelar a ele o quanto ela era desejada na juventude, numa cena que ajuda a sintetizar o nível dos sentimentos conflitantes da personagem entre suas responsabilidades atuais e as vontades recém-reemersas.

É dentro deste desenvolvimento, vale acrescentar, que Dano denota uma dependência maior do elenco, especialmente de Mulligan e Oxenbould que carregam o grosso dramático do longa. Enquanto ao garoto cabe a tarefa de receber e reagir aos efeitos das instabilidades cada vez maiores do relacionamento dos adultos e Gyllenhaal repete sua expressividade contida característica, a atriz se vê no centro destas transformações turbulentas em mais um papel de dona-de-casa, uma posição da qual sabe muito bem como elaborar em cima. Se os eventos de “Vida Selvagem” possuem algum peso emocional ao longo de toda a sua narrativa, é porque Mulligan mantém constante em sua performance as dores deste processo.

Dano denota uma dependência maior do elenco, especialmente Mulligan e Oxenbould que carregam o grosso dramático

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É também da performance da atriz, porém, que se percebe a falta de familiaridade do diretor com o drama do qual exerce, pois ainda que mantenha em voga uma premissa de temáticas fortes é inevitável a sensação de que “Vida Selvagem” comece grande e termine diminuto. Um decréscimo que surge de uma certa frieza narrativa, a bem da verdade: Dano aqui sabe como balancear os anseios de sua narrativa e mantê-los presentes por toda a duração do projeto, mas ao mesmo tempo não parece lidar bem com um peso emocional maior quando na hora de proporcionar o choque. Seja a confrontação final de Jerry e Jeanette ou a ira do marido ao descobrir o alcance da traição da esposa, os momentos de clímax da produção soam simples demais, presos a atos banais e resoluções de impacto inexistente quando o drama pede justo o oposto.

Estas limitações, entretanto, não chegam a corromper o eixo temático concebido, o que ajuda o filme a se manter relativamente firme mesmo quando a narrativa não é capaz de acompanhar os vai e vens dos arcos dos protagonistas. O equívoco, talvez, venha de um problema de abordagem de Dano com a história que quer contar, porque enquanto seu lado novelista se revela cru e sem pulso, a sua atenção maior ao registro das aflições interiores de uma geração proporcionam os pontos mais dolorosos de sua obra, sacramentados no último plano que é a literal representação de uma juventude de desejos frustrados e conformação forçada.

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