Vale do Silício é cobrado pela falta de posicionamento em relação à Arábia Saudita
Pólo tecnológico dos Estados Unidos parece não entender que a isenção não é uma opção em tempos de extremismos
O Vale do Silício está em silêncio enquanto vê a Arábia Saudita, um de seus maiores investidores, envolvida com o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi. O país é acusado de ter orquestrado a morte de Jamal durante sua visita à embaixada saudita na Turquia. Segundo investigações turcas, o príncipe-herdeiro Mohamed bin Salman estaria diretamente ligado ao assassinato, por isso o afastamento de seu cargo tem sido pedido por parte da comunidade internacional.
O caso extremamente delicado respingou no pólo tecnológico dos Estados Unidos, uma vez que a Arábia Saudita investiu bastante no setor na última década, particularmente através de seu fundo Public Investment Fund of Saudi Arabia (PIF). O príncipe Al Walid bin Talal, embora não seja próximo do príncipe-herdeiro, também está presente no Vale por meio de sua holding Kingdom Holding Company (KHC), além de ter participações na Apple, no Twitter e na Snap (dona do Snapchat).
Os investimentos de entidades sauditas e do próprio príncipe Al Walid em várias startups e corporações americanas do setor de tecnologia são bem significativas, como o investimento de US$ 3,5 bilhões na Uber em 2016. Inclusive, o diretor-geral do PIF, Yasir Al-Rumayyan, integra o conselho administrativo da Uber.
O PIF também investiu na Tesla e na Lucid, enquanto a KHC apostou na Lyft.
Todas essas (e muitas outras) ligações fizeram os veículos de comunicação dos Estados Unidos aguardarem por um posicionamento oficial de empresas e startups do Vale do Silício que se beneficiaram do dinheiro saudita nos últimos anos. Mas, até o momento, embora algumas empresas tenham se recusado a participar de uma recente conferência na Arábia Saudita (embora tenham enviado estagiários), o que impera mesmo é o silêncio.
O não posicionamento das empresas, porém, não tem sido visto com bons olhos, sendo até mesmo comparado aos discursos comedidos do presidente Donald Trump sobre o assassinato de Jamal. Trump chegou a dizer que, numa eventual suspensão da venda de armas para a Arábia Saudita, quem sairia perdendo seriam os Estados Unidos, por isso a medida não é considerada.
“Sair perdendo” ao emitir qualquer posicionamento é algo que muitas empresas do Vale do Silício podem considerar. Há também de se analisar questões contratuais e o envolvimento de outros acionistas. Ainda assim, nenhuma empresa destinatária do capital de Mohamed bin Salman falou publicamente sobre não aceitar mais qualquer financiamento ligado ao príncipe.
Vale ressaltar que antes do assassinato do jornalista, líderes do Google, da Amazon e de outras grandes empresas de tecnologia orgulhosamente se envolveram com o príncipe-herdeiro. Muitos até assinaram contrato com a Neom, um projeto de uma megacidade saudita estimada em US$ 500 bilhões, mesmo depois que Mohamed reuniu seus familiares e os aprisionou no Ritz-Ritz-Carlton (há pouco mais de um ano); foi acusado de sequestrar o Primeiro Ministro do Líbano em um esquema atrapalhado e que visava culpar o Irã; e buscou (com o apoio dos EUA) uma guerra por procuração contra o Irã no Iêmen que rendeu o que as Nações Unidas consideram “a maior crise humanitária do mundo”.
Assim, não se pode dizer que a indiferença do Vale do Silício em relação às atitudes do príncipe que infringem os Direitos Humanos é surpreendente. Como muitos veículos dos Estados Unidos apontam, não há exatamente um clima de indignação pública no país em relação ao assassinato do jornalista.
Mas o Vale do Silício é cobrado por sua ideologia, que prega uma idealização de mudança no mundo, mas que não é exatamente vista na forma como seus negócios são feitos. Como escreveu o crítico Anand Giridharadas, do The New York Times: “Enquanto o mundo enche os tanques de carros com gasolina e a mudança climática piora, a Arábia Saudita colhe enormes lucros – e parte desse dinheiro aparece nas contas bancárias do país, em empresas em rápido crescimento que adoram falar em ‘tornar o mundo um lugar melhor'”.
Segundo a jornalista especialista e tecnologia Kara Swisher, “o Vale do Silício é tão dependente do financiamento da Arábia Saudita que se você remover os sauditas, tudo entra em colapso”. A frase exemplifica bem que um desligamento entre empresas de tecnologia americanas e o financiamento saudita, obviamente, não vai acontecer.
Mas agora o Vale do Silício sabe que a isenção não é uma opção “blindada”. Em tempos de extremismos, a cobrança por posicionamentos claros torna-se fundamental e é exigida. Assim, cabe às empresas decidirem com quais consequências elas preferem lidar: as de um posicionamento ou da falta dele.