Festival do Rio: "O Favorito" analisa relação tóxica entre imprensa e política
Imagem: The Front Runner

Festival do Rio: “O Favorito” analisa relação tóxica entre imprensa e política

Protagonista anacrônico lidera trama ambientada na corrida eleitoral de 1988

por Matheus Fiore

Em 1987, o senador americano Gary Hart era o favorito para a candidatura democrata à presidência na eleição de 1988. Um escândalo envolvendo um caso extra-conjugal com Donna Rice, porém, fez com que Hart abandonasse sua campanha. O filme de Jason Reitman (que em 2018 já lançou o ótimo “Tully”) acompanha exclusivamente a campanha de Hart e os bastidores do caso. Entretanto, “O Favorito” não é o que chamaríamos de um filme sobre eleições, menos ainda focado no affair entre Gary e Donna. “O Favorito” posiciona-se como um marco para uma transformação na relação entre a imprensa e o meio político. É o “nascimento” de um novo modelo de jornalismo político.

O roteiro, que Reitman co-escreve com Jay Carson e Matt Bai (autor do livro “All the Truth Is Out: The Week Politics Went Tabloid” no qual o filme se baseia), estabelece um Gary Hart muito humano. É nítido que o personagem possui certa prepotência, mas faz questão de tentar conquistar o maior eleitorado possível durante suas viagens de campanha. O Gary de “O Favorito” é um político extremamente preparado e convincente, tendo amplo domínio sobre seu discurso e conseguindo ter o ethos que encarna perfeitamente o ideal de líder americano – o que torna sua queda ainda mais impressionante, já que Hart parecia que de fato seria o presidente eleito em 1988.

A grande sacada do roteiro – que é o que torna o personagem humano – é criar um protagonista que se torna evasivo sempre que tem sua moralidade questionada. Gary Hart parece estar pronto para qualquer debate ou questionamento sobre política, filosofia ou economia, mas um simples comentário sobre sua conduta pessoal o desmascara imediatamente. O Gary Hart de “O Favorito” é, portanto, um sujeito anacrônico, que estaria totalmente preparado para disputar eleições nos tempos de John F. Kennedy ou Franklin Roosevelt, que tiveram casos extra-conjugais sem maiores danos às suas imagens. Em um período no qual a vida pública e a privada se entrelaçam, porém, Hart acabou exposto por não saber proteger sua própria privacidade.

Na criação do democrata que protagoniza a trama, Hugh Jackman merece aplausos por conseguir flutuar naturalmente entre as duas faces de Hart; é na primeira metade do filme um sujeito extremamente centrado e seguro em sua fala, que aos poucos passa a expressar-se de forma mais apressada e com voz alta, deixando claro o desequilíbrio causado por sua exposição. E para que sua atuação seja tão eficiente, o trabalho do diretor de fotografia Eric Steelberg também é imprescindível, principalmente por passar a filmar o protagonista em contraluz a partir do declínio de sua campanha, fazendo com que vejamos sua imagem completamente apagada, reconhecível apenas pela silhueta – o que poderia ser mais simbólico para um político decadente do que a perda de sua imagem e identidade?

Hugh Jackman merece aplausos por conseguir flutuar naturalmente entre as duas faces de Hart

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Uma questão curiosa relacionada a “O Favorito” é como o filme se posiciona. Se por um lado, não há nenhuma tentativa de inocentar seu protagonista, a obra também não isenta a imprensa de culpa pela relação tóxica criada entre público, mídia e política nos últimos 30 anos. Os escândalos sexuais envolvendo políticos são algo constante na trajetória americana. Hart talvez tenha sido o primeiro grande caso, mas o escândalo Clinton-Lewinsky, envolvendo Bill Clinton, talvez seja o principal exemplar das últimas décadas. É como se com “O Favorito” Reitman acreditasse que uma série de fatores coincidiram para a criação de um novo cenário e que surgiu naturalmente, independente das ações de X ou Y – afinal, o escândalo não se tornou um escândalo simplesmente pela divulgação do caso extra-conjugal, mas sim pelo fato de a mídia ter repercutido a situação e dado mais ênfase a ela do que aos projetos políticos de Hart.

A impressão que fica, então, é que Reitman deseja apenas virar sua câmera para o passado e registrar o nascimento de uma relação que resultou na ascensão e na consagração de políticos como Donald Trump. Enquanto Trump teve noção de como a imprensa funcionava e utilizou isso para alavancar seu nome e sua campanha, Gary Hart, num vão esforço, ainda tentou combater um sistema que já estava estabelecido. Seu anacronismo se dá por, em 1987, entrar em uma batalha utilizando as armas de 1960.

O filme registra o nascimento de uma relação que resultou na ascensão e consagração de políticos como Donald Trump

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Todo o escândalo de Hart se desenrola como uma bola de neve, o que resulta em cenas extremamente precisas, como quando em uma de suas últimas entrevistas coletivas Hart é perguntado por dois jornalistas sobre o suposto caso e, posteriormente, quando o político já estava sendo engolido pelo restante da imprensa, essas duas figuras sejam vistas desaparecendo na multidão. É como se os jornalistas responsáveis pelo vazamento do caso extra-conjugal estivessem criando um monstro maior do que eles, esculpindo definitivamente uma relação invasiva entre imprensa e políticos que passou a dar a mesma atenção para as propostas e para a conduta pessoal dos candidatos. O “monstro” é, inclusive, responsável por uma interessante mudança de filmagem da obra, que durante os primeiros momentos flutua de forma suave pelos cenários para, a partir do estouro do escândalo, passar a mover-se mais agitada, estabelecendo esta mudança brusca de cenário.

“O Favorito” ainda merece elogios por fugir do convencional e não tentar impactar seu público desgastando o relacionamento entre Hart e sua família. A ideia de Reitman é apresentar seus personagens como engrenagens de um sistema, mostrar como um caso específico escalou de forma inédita e atropelou qualquer previsão de especialistas da campanha de Gary Hart. Nascia, ali, uma nova demanda midiática. Não é um filme que faz julgamentos ou aponta soluções, e sim joga para o colo do espectador o questionamento: é esse tipo de jogo político que queremos?

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