- Cultura 23.mar.2018
“O Mecanismo” demonstra potencial, mas raramente foge do discurso simplista e maniqueísta de seu criador
Com decisões desonestas, série da Netflix sobre Operação Lava Jato mais atrapalha do que ajuda a compreensão do atual cenário brasileiro
Na entrevista coletiva de divulgação da série que ocorreu no Rio de Janeiro, José Padilha fez duas afirmações curiosas. A primeira é a de que o mundo se divide entre marxismo e liberalismo, uma visão de mundo tão simplista e maniqueísta que nem parece pertencer ao sujeito que trouxe um universo tão cinza em “Tropa de Elite”. A segunda é sobre a visão de Padilha quanto ao principal problema do Brasil: na opinião do cineasta, todas as mazelas da nação, dos problemas estruturais aos sociais, provêm de um “mecanismo”, uma lógica de corrupção que se retroalimenta sistemicamente. É, claro, esse mecanismo que dá nome à série da Netflix: “O Mecanismo”.
Essas duas questões apontadas por Padilha se refletem diretamente na abordagem que sua obra faz dos acontecimentos da Operação Lava Jato. O tal “mecanismo” é o centro da jornada de Marco Ruffo, policial vivido por Selton Mello que investiga casos de corrupção. Paralelamente à investigação da Polícia Federativa (versão fictícia da Polícia Federal), que trabalha com o caso do doleiro Roberto Ibrahim (versão fictícia de Alberto Youssef) e demais envolvidos nos esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro, Ruffo cria uma jornada solitária para compreender as raízes da corrupção no Brasil. Infelizmente, a afirmação reducionista de Padilha também se faz presente na série. Se em “O Mecanismo” houver um herói, ele será um personagem moralmente perfeito, imaculado. O mesmo vale, claro, para os vilões, o que resulta em cenas que causam vergonha alheia, como quando um bilionário corrupto rouba… Doces. Apenas para que a série possa afirmar quão “malvado” ele é em qualquer situação.
A visão de mundo de José Padilha reflete diretamente na abordagem que sua obra faz dos acontecimentos da Operação Lava Jato
Os primeiros episódios da temporada parecem não ter um norte. Indecisa entre desenvolver a jornada pessoal dos personagens ou contextualizar o espectador no complexo cenário político apresentado, a série acaba tendo problemas em ambos. Um dos problemas é a insistência de “O Mecanismo” em registrar acontecimentos relevantes exclusivamente sob o ponto de vista dos personagens corruptos, e não sob o ponto de vista dos policiais que trabalham na operação. Como resultado, o espectador conhece os vilões melhor do que os heróis que guiam narrativamente a série, já que “O Mecanismo” é narrado ora por Marco Ruffo, ora por Verena Cardoni, policial vivida por Caroline Abras.
Voltando à questão da lógica por trás do sistema de corrupção do país, “O Mecanismo” faz uso acertado de alguns elementos cinematográficos para fortalecer a ideia. Já no primeiro capítulo, Ibrahim, o principal vilão, é descrito como um câncer, que se espalha se não for contido, algo que se reflete na forma como o personagem é fotografado. Quando Ibrahim está junto a um grupo de políticos, por exemplo, é fotografado com uma luz vermelha, cor muito utilizada para estabelecer perigo ou violência. Já quando Ibrahim está preso, é constante o uso de uma forte luz verde sobre o personagem, o que funciona tanto para cimentar sua ganância, já que o verde é a cor do dinheiro, quanto para criar um ambiente tóxico, adoecido, que é a prisão onde ele se encontra.
Infelizmente, o roteiro extremamente expositivo e os acontecimentos repetitivos tornam a trama arrastada, mesmo para uma série de apenas oito episódios. O personagem de Leonardo Medeiros, João Pedro Rangel, diretor da “Petrobrasil”, é um exemplo disso: o milionário parece preso a uma cadeia de eventos que se repetem, já que ele é preso, sua família se envolve no caso tentando libertá-lo, ele tem sua rotina na cadeia desenvolvida, é solto, e tudo acontece novamente pouco tempo depois. Em certos momentos, Rangel se torna um simples mecanismo do roteiro para permitir que seu amigo, Ibrahim, explique para ele tudo que ele já deveria saber, mas não sabe justamente para que haja a possibilidade de o doleiro explicar para o público.
O tom professoral trazido pelo excesso de explicações e narrações é um dos pontos baixos da temporada
O tom professoral trazido pelo excesso de explicações e narrações é um dos pontos baixos da temporada, mas “O Mecanismo”, em sua reta final, encontra um rumo interessante. Passando a trabalhar com igualdade de tempo de tela os dilemas pessoais dos personagens e o trabalho na Operação Lava Jato, “O Mecanismo” consegue humanizar suas figuras. Padilha havia dito na entrevista coletiva concedida no Rio de Janeiro (leia nossos comentários sobre ela aqui, junto às nossas primeiras impressões), que sua visão sobre a Lava Jato era de que a operação era importante, mas falha. O seriado trabalha isso mostrando as intrigas internas entre os agentes da Polícia Federativa: desde a falta de confiança entre os colegas de trabalho até a disputa de ego, quando um personagem tenta ser mais relevante que o outro. Esse é um dos pontos altos da série, justamente por quebrar o maniqueísmo que domina a maior parte dos oito episódios, trazendo verossimilhança ao que antes parecia caricato.
O primeiro ano de “O Mecanismo” funciona mais como introdução de uma trama do que como obra isolada
A primeira temporada não alcança o mesmo nível dos demais trabalhos de Padilha dedicados à política brasileira, mas nem tudo é culpa de “O Mecanismo”. Há que se destacar o fator tempo, já que, em casos como a saga “Tropa de Elite” e “Ônibus 174”, por exemplo, o cineasta teve a vantagem do deslocamento de tempo: pôde fazer obras de arte sobre eventos já fechados, com quantidade enorme de informações disponíveis. O mesmo não acontece com a série original da Netflix, já que a Operação Lava Jato ainda está em curso, e, ainda mais importante do que isso, não há uma visão clara sobre os acontecimentos. Tudo que é relacionado à atual situação política do Brasil ainda é turvo, de difícil análise.
Ainda prejudica a análise de Padilha o fato de o criador manter uma visão excessivamente rasa e até enviesada sobre os conflitos políticos atuais. Como José disse na entrevista, ele acredita que o Impeachment foi um golpe de uma quadrilha aplicado em outra, algo que reflete na forma clichê com que personagens como Lula e Dilma são retratados. Piora a situação o fato de “O Mecanismo” ainda ter posturas desonestas, como atribuir a Lula o diálogo sobre “estancar a sangria em um grande pacto nacional”, fala que todos sabem pertencer a Romero Jucá, que se referia à manobra para tirar o PT do poder.
O que essa primeira temporada consegue tirar de bom é apresentar a visão de seu criador. Simplista ou não, aqui não haverá juízo de valor, apenas de fato: “O Mecanismo” é uma série sobre o ponto de vista de José Padilha, que acredita haver uma lógica de vantagem e individualismo na cultura brasileira. Mas, mais do que isso, é uma série sobre um personagem em busca de identificar e desconstruir esse mecanismo. O primeiro ano de “O Mecanismo” funciona mais como introdução de uma trama do que como obra isolada, o que é um defeito, mesmo que haja pontos positivos. Mais interessante do que analisar o que foi feito é aguardar para ver o que acontecerá num possível segundo ano.