"Eu queria que a série tivesse um quê de livro de histórias" diz Frank Miller sobre "Cursed: A Lenda do Lago"

“Eu queria que a série tivesse um quê de livro de histórias” diz Frank Miller sobre “Cursed: A Lenda do Lago”

Ao lado do também produtor Tom Wheeler, autor dá mais detalhes sobre a criação de sua série original na Netflix, uma reinterpretação da lenda do Rei Arthur

por Pedro Strazza
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Imagem: CURSED (L to R) KATHERINE LANGFORD as NIMUE in episode 108 of CURSED Cr. COURTESY OF NETFLIX © 2020

Com quase 60 produções sendo lançadas no catálogo do serviço neste mês de julho e em meio ao verdadeiro caos que é a realidade da pandemia, talvez escape aos olhos do público a informação de que a Netflix lança neste próximo dia 17 de julho uma nova adaptação das lendas do Rei Arthur que conta com Frank Miller entre os realizadores. A premissa, porém, é o que realmente intriga em “Cursed: A Lenda do Lago”, dado que ela em nenhum momento cita Arthur ou Camelot e concentra as atenções em uma personagem que poucos espectadores estão familiarizados: Nimue, a Dama do Lago e detentora da poderosa Excalibur.

Esta mudança brutal de perspectiva é o que alimenta todas as atenções no programa comandado por Miller e Tom Wheeler, produtor e roteirista que também divide com o celebrado quadrinista a autoria do livro de mesmo nome no qual a série se baseia. Pelo menos nos cinco primeiros episódios dos 10 previstos para serem lançados no serviço de streaming no próximo dia 17 de julho, a história de Nimue não apenas se faz radicalmente oposta à de Arthur como também é permeada por tragédia: revelada desde jovem como um ser “amaldiçoado”, a personagem vivida por Katherine Langford logo no primeiro episódio assiste sua aldeia ser destruída pela ação de uma seita religiosa fanática e precisa fugir para sobreviver, além de ser intimada pela mãe a entregar uma espada misteriosa ao famoso mago Merlin (Gustaf Skarsgard).

A questão é que Merlin não é o senhor sábio que a cultura pop se habituou a retratar, mas na verdade se porta como um bêbado ambulante que sofre com a perda de seus poderes e o tormento de uma mulher misteriosa e mortal. E ele não é a única figura conhecida das histórias que dá as caras de um jeito diferente na série, que se encarrega de recontar a trama tradicional de cavalaria sob um ângulo pouco mais sóbrio mesmo quando mergulhado em um universo fantástico; o próprio Arthur (Devon Terrell) é um destes casos, não demorando a aparecer como um mercenário órfão que busca se provar como soldado e cuja confiabilidade a princípio é tratada como dúbia – um padrão dentro do programa.

É justamente este ato de tentar traçar uma história anterior às lendas arturianas que levou os dois showrunners a encontrar sua versão para o programa e o livro. “Nós nos sentimos obrigados a trazer algo novo à mesa pois, por mais que eu quisesse ver a versão de Merlin e do Rei Arthur do Frank, houveram muitas histórias sobre a espada na pedra” afirmou Wheeler em uma mesa-redonda com o B9 realizada por videoconferência um mês antes do lançamento oficial de “Cursed”, no qual também comentou que sua filha de 11 anos teve uma participação crucial na escolha de Nimue como protagonista.


O Arthur da série impunha a misteriosa espada que move a premissa da série

“Eu queria que ela tivesse um desses personagens para se conectar, e foi aí que olhamos para aquela dama” disse na ocasião; “a imagem do lago e daquela espada e braço saindo debaixo da água, ela sugere muita coisa, desde mágica e romance até tragédia. Assim que começamos a voltar a história para criar um passado a Nimue foi quando eu acho que as oportunidades começaram a aparecer porque, bem, como você chega a uma mitologia que conhecemos? Qual é a jornada para chegar ao Arthur e Merlin que estamos familiarizados?”.

Para Miller o processo foi bastante natural, dado que seu modo de trabalho sempre se deu em torno do que ele classifica como “torções”. “Eu tendo a achar algo histórico ou trabalhar numa história minha e começar a bagunçá-la até que de repente tudo começa a me incomodar e eu quero saber o que acontece nela” declarou o escritor no encontro, onde citou “Sin City” como um exemplo do tipo de trabalho que ele “vê onde vai parar”: “Eu já sei como ela vai terminar porque eu tenho que terminar do jeito que aconteceu, mas tem que ser algo que eu sinta que só vai ficar bom o suficiente se eu continuar a me jogar no material todo dia por um bom período de tempo” comentou.

Ao mesmo tempo, é bem aparente no decorrer de “Cursed” o quanto os dois showrunners quiseram preservar uma aura típica das histórias mitológicas, preservada aqui não apenas nos momentos mais fantásticos da trama mas também em transições animadas que marcam a mudança de núcleo dramático de uma cena a outra. “Eu queria que a série tivesse um quê de livro de histórias” comenta Miller na videochamada; “Eu não queria que fosse algo muito chamativo, mas só um toque, um lembrete de que isto que você está vendo é na verdade a leitura de uma história de tempos antigos, mas também é parte da lenda do Rei Arthur”.

Wheeler ainda adiciona que estes momentos tiveram origem nas próprias influências do quadrinista para produzir as ilustrações do livro no qual o seriado se baseia. “Frank sempre falou sobre essa ideia de que a história de Nimue é também uma espécie de conto de fadas sombrio, e como ele vinha comentando sobre a influência dos trabalhos de Arthur Rackham no livro que publicamos a gente achou uma forma interessante e divertida de levar o espectador entre as cenas, informando-o sobre o mundo com um pouco mais de mágica. Foi algo que gostamos muito de fazer” declarou na ocasião.

Um olho no passado, outro no presente

Como toda boa história, a reinterpretação da lenda de Arthur obviamente não vai escapar de uma apropriação de temas e discussões que perpassam a atualidade. Além do protagonismo feminino e do sentimento de representação, o próprio uso de uma turba de fanáticos religiosos – a tal “Ordem Vermelha” e o Monge Chorão que lhe serve como executor bárbaro – reflete um momento onde o mundo parece estar em mais um ápice de desesperança, tomado por ondas conservadoras que recusam qualquer pessoa diferente dos padrões – o que na série significam seres mágicos como fadas ou mesmo magia.

“Essas coisas estão ecoando na cabeça das pessoas, e elas pensam nas coisas que as estão atormentando agora” afirma Miller na entrevista; “Bom, esta série é sobre o berço da civilização. As pessoas hoje estão preocupadas sobre vírus, e naquela época o mundo estava morrendo de uma praga e sucessivos conflitos políticos. As pessoas lutavam guerras gigantescas toda hora, não havia paz então, mas contra todas as expectativas haviam coisas que eram verdadeiras e valiosas, como o romance”.


Katherine Langford em momento climático de “Cursed”

Em cima deste gancho deixado pela fala de Miller, Wheeler logo depois comenta que estes elementos que levam o público e os próprios autores a revisitar constantemente as mesmas histórias, citando Camelot como uma “espécie de momento passageiro de um ideal de união”. “Eu penso que há este sonho, e o Frank sempre o descreve, de que um personagem como Arthur traga a civilização à gente em um mundo barbarizado.” declara o produtor, que também acrescenta que a jornada da protagonista na série lembra muito os protestos e manifestações do público jovem contra o atual estado do mundo – até porque a luta de Nimue na trama é derrotar uma ordem que quer não só dominar mas impor ao mundo a sua visão de certo e errado.

“Nimue tem este aspecto de uma juventude que lidera um levante para alterar o status quo, lutando contra o que aparentam ser chances intransponíveis. A gente vê isso acontecer neste momento com os jovens, seja nos Estados Unidos ou no mundo, e nós meio que refletimos isso de volta em nossas histórias, já que o que acontece neste momento no planeta é muito mais importante que o que ocorre no programa” finaliza o produtor no encontro.

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