“O Lar das Crianças Peculiares” é mais convencional do que o título sugere

“O Lar das Crianças Peculiares” é mais convencional do que o título sugere

Melhor filme de Tim Burton em quase dez anos, adaptação do best-seller de Ransom Riggs ainda está longe dos grandes trabalhos do cineasta

por Virgílio Souza

Em outros tempos, seria imperdível ver Tim Burton adaptar para os cinemas um romance como o de Ransom Riggs. Como se autor e cineasta fossem a combinação perfeita, todos os ingredientes são compatíveis: Jake (Asa Butterfield), o protagonista solitário que tem fotografias de pessoas desconhecidas como ponto de partida para suas aventuras parece mesmo saído da mente do responsável por “Edward Mãos de Tesoura”. Diante de uma crise de criatividade constante e de títulos questionáveis, porém, a combinação se revela apenas redundante.

Prestes a completar dez anos sem realizar um filme verdadeiramente empolgante, Tim Burton provavelmente deveria explorar terrenos menos convencionais; podermos tranquilamente chamar de “convencional” um universo tão particular já é sinal desse esgotamento. Ainda assim, o fato de ser conhecido não torna o terreno necessariamente menos fértil. É seguro dizer que, em meio à repetição de suas marcas registradas, ocasionalmente o diretor encontra momentos preciosos.

Nesse sentido, é também correto afirmar que “O Lar das Crianças Peculiares” traz mais desses exemplos positivos do seus antecessores imediatos. Construído a partir de fotografias de colecionadores, o livro de Riggs traça uma narrativa de fantasia que dedica atenção especial às figuras que apresenta. Quando se presta a fazer o mesmo, observando as características de suas criaturas, Burton tem enorme sucesso — o que interessa a ele desde sempre é o peculiar, como sua trajetória denuncia.

Tim Burton dirige Asa Butterfield no set

Tim Burton dirige Asa Butterfield no set

Miss

Miss Peregrine, a personagem de Eva Green que ocupa espaço de destaque o título original da obra, é o principal símbolo dessa tendência. Responsável por administrar o orfanato (como uma versão mais comportada do lar dos “X-Men”) e guiar o elenco infantil pela trama, ela se equilibra entre a autoridade e a amabilidade exigidas por sua posição. Não por acaso, os segmentos em que o roteiro de Jane Goldman concentra a ação no casarão, com todas as possibilidades que ele esconde, são os mais interessantes do filme.

Com base nos demais títulos de sua filmografia como roteirista, tais como “Primeira Classe” e “Dias de um Futuro Esquecido”, a escolha de Goldman para a função faz todo sentido. O problema é que suas pretensões aqui parecem fora de controle, e é tarefa impossível dar conta de tanto com a obrigação de imprimir a assinatura de Burton em cada plano.

Não se trata de um exagero: “O Lar das Crianças Peculiares” realmente tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo. Elementos tão complexos e distintos como viagem no tempo e super-poderes são centrais para a narrativa, que ainda tenta fundar sua mitologia própria, além de explorar uma conflituosa reconciliação entre pai e filho, uma amizade transcendental entre avô e neto, um elaborado plano de vilões que buscam a imortalidade, um romance infanto-juvenil e, acreditem ou não, uma metáfora do holocausto.

Miss
Mesmo em meio à repetição de suas marcas registradas, ocasionalmente o diretor encontra momentos preciosos

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Quem mais sofre pelas idas-e-vindas do roteiro é Jake, perdido entre tantas viagens no tempo e no espaço, entre a casa na Flórida, a ilha no País de Gales e aquele mundo a descobrir e entender. Na prática, o protagonista é somente um intermediário entre o universo fantástico e o do espectador e, por isso, o filme toma boa parte de seu tempo apenas preparando o ambiente, trabalhando cada conceito e apresentando cada personagem, com atenção para suas características mais especiais.

Chegada a hora de colocar as peças em ação, porém, Burton opta pelas decisões menos inspiradas. Como no romance que serviu de base para a história, a lógica por trás da execução é mais interessante do que o produto final. As fotografias incluídas no livro de Riggs, no entanto, valorizam mais o texto do que os trejeitos de Burton engrandecem o filme. Não há imersão em uma nova atmosfera ou invencionice na construção visual, por exemplo, que salve o vilão Barron (Samuel L. Jackson) da decepção — no breve trecho em que o filme segue seu lado mais esquisito, com comedores de olhos saídos de um pesadelo, ele é excelente; no resto do tempo, apenas mais um vilão que sequer desperta perigo.

Miss
Na ânsia por espalhar piscadelas para os fãs, Tim Burton atropela a ação e compromete o ritmo da própria trama

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“O Lar” também subaproveita o potencial do núcleo infantil, dando instantes de atenção individual às crianças, mas impedindo que elas ultrapassem as fronteiras de suas habilidades e gerem identificação genuína. A garota que flutua no ar (Ella Purnell) talvez seja a única exceção: amarrada pela cintura, ela surge como uma imagem emblemática e se torna mais do que isso, conquista sua relevância na trama. No restante dos casos, as aparições são pontuais, servindo apenas a propósitos específicos.

Se a condução dos personagens deixa a desejar, a forma como o diretor trabalha seu arsenal de referências é ainda mais complicada. A sensação é de que, na ânsia por espalhar piscadelas para os fãs e espectadores mais atentos, Burton atropela a ação e compromete o ritmo da própria trama. Soluções como a formação de um exército de esqueletos (um aceno para “Jason e os Argonautas”) surgem e são abandonadas rapidamente, tendo seu potencial desperdiçado em segundos. Por sua vez, as menções à própria obra, como o segmento em animação stop-motion, jamais justificam sua existência.

Novamente, apontar as deficiências não significa anular os méritos. Além dos aspectos já citados, o uso mais harmonioso da computação gráfica representa um aprimoramento para o cineasta — o salto com relação a “Alice no País das Maravilhas” é enorme em termos de profundidade e respeito à geografia das cenas. No entanto, por mais que a evolução geral, comparada a “Grandes Olhos” e “Sombras da Noite”, seja também evidente, é difícil negar a falta de energia comum a todos esses trabalhos e desconfiar do que vem a seguir, em especial caso a continuação de “Beetlejuice”/“Os Fantasmas se Divertem” se confirme como o próximo capítulo dessa história.

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