Festival do Rio: o esvaziamento da arte é o mote de "Vox Lux"

Festival do Rio: o esvaziamento da arte é o mote de “Vox Lux”

Natalie Portman encarna cantora que perde sua essência e passa a cantar sobre sentimentos que sequer compreende

por Matheus Fiore

Em certo ponto de “Vox Lux”, ainda no primeiro terço da obra, a protagonista Celeste (quando adolescente, interpretada por Raffey Cassidy) canta uma música em homenagem às vítimas de um tiroteio ocorrido em sua escola – tragédia da qual ela foi uma das poucas sobreviventes. É ali que Celeste vê as portas do mundo se abrindo para ela. Um plano dando ênfase à lente da câmera de um jornalista e o comentário de um produtor que sugere trocar o “eu” por “nós” na letra da música – que fala sobre o sentimento de perda – são os elementos que simbolizam o nascimento de uma nova estrela do mundo da música. Sua música comove o país, e, dali em diante, sua vida girará em torno da carreira artística.

Bem diferente de filmes como “Nasce Uma Estrela”, porém, “Vox Lux” não é uma jornada de ascensão e queda e muito menos um romance entre artistas em fases diferentes da vida. O longa de Brady Corbet na verdade está mais interessado em falar sobre o esvaziamento desses artistas. Analisando os dois elementos citados anteriormente no texto, podemos interpretar a lente como um símbolo da conquista de espaço na mídia. O registro que eterniza a apresentação da jovem Celeste. Para eternizar a artista Celeste, porém, existe a mudança na letra. A carga pessoal impressa pelo “eu” cede lugar para um “nós” não só porque facilita a identificação do público com a música, já que cria um convidativo sentimento coletivo, mas porque mostra que, dali em diante, a protagonista nunca mais poderá compor algo verdadeiramente dela. Sua primeira música já é mutilada e esvaziada por um produtor. Celeste nunca mais agirá como “eu”, e sim como “nós”.

Brady Corbet (à esquerda) com Natalie Portman no set

Todo o restante da trama se divide em dois segmentos: o primeiro são os passos iniciais de Celeste como artista. Suas primeiras idas ao estúdio, a primeira turnê internacional, o primeiro relacionamento com uma estrela, a primeira aula de dança. Ali, a montagem de Matthew Hannam parece, inicialmente, um pouco desconjuntada, já que alonga demais algumas cenas que normalmente seriam cortadas em menos tempo. A primeira aula de dança de Celeste, por exemplo, dura alguns bons minutos e não acrescenta praticamente nada naquele momento. Aos poucos, porém, “Vox Lux” ressignifica seus elementos, e é aí que entra o segundo segmento: acompanhamos a uma Celeste adulta, no auge de sua carreira (agora interpretada por Natalia Portman), e Corbet traça paralelos com o passado e o presente da artista.

A aula de dança da menina desengonçada é revivida quando a já adulta Celeste se apresenta no palco com a mesma coreografia. Vemos, porém, a enorme diferença entre as personagens. Em vez de um salão de dança ocupado apenas por uma jovem artista e sua coreógrafa, agora temos um palco megalomaníaco no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Celeste divide o palco com uma dezena de dançarinos e canta músicas que nada têm a ver com as composições de sua adolescência.

O longa de Brady Corbet está interessado em falar sobre o esvaziamento de artistas como Celeste

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Corbet consegue, então, expor sua protagonista como uma grande construção, uma farsa da indústria. Celeste trocou sua família e personalidade pelo sucesso. Um verdadeiro pacto com o Diabo. Corbet ainda faz uma escolha brilhante de trazer de volta a atriz Raffey Cassidy para a parte final da obra, utilizando-a para o papel de Albertine, a filha de Celeste. Quando ambas contracenam, portanto, temos a oportunidade de ver o choque entre a pessoa que a protagonista foi e a pessoa em que ela se tornou. Para que isso seja efetivo, uma escolha do roteiro precisa ser exaltada: não há “meio” no filme. Se em uma cena, a jovem Celeste está gravando seu primeiro videoclipe, em instantes ela já estará na sua vida adulta, dezesseis anos depois, preparando-se para um grande show em Nova Iorque.

A atuação de Natalie Portman é um tanto quanto caricata, mas isso não é algo negativo. É uma escolha para criar maior choque entre as personalidades das duas versões de Celeste. Desbocada, agressiva, egoísta e disposta a passar por cima de qualquer um para alcançar seus objetivos, a Celeste de Portman é praticamente oposta à personagem inicial que ainda exigia a presença de sua irmã mais velha no estúdio, como figura protetora. A possibilidade de ter Celeste e sua filha lado a lado expõe o quanto o a indústria e o meio onde a cantora cresceu esvaziaram completamente sua essência.

A protagonista é retratada como uma grande construção, uma farsa da indústria

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Corbet faz outras escolhas interessantes para marcar essa transformação de sua protagonista. Após o atentado que abre a trama, acompanhamos os créditos iniciais durante uma cena que mostra a ambulância levando Celeste para o hospital. Os créditos, porém, são projetados no mesmo formato visto comumente no fim dos filmes, com as referências aos profissionais da obra passando verticalmente pela tela. É como se, ali, acabasse um filme e começasse outro. É o registro da morte e do renascimento de Celeste.

O que torna “Vox Lux” um filme incrível, porém, é como ele consegue expor o esvaziamento que ocorre durante a jornada de Celeste. Se o fato de ser uma das vítimas de um atentado terrorista foi crucial para sua formação como pessoa e para seu nascimento como artista, o olhar de desdém que a cantora lança sobre outros atentados deixa claro que, no meio do caminho, a moça não só abandonou suas raízes, como também sua humanidade. O show reproduzido no ato final, que traz ao fundo, no telão, palavras como “oração”, “amor”, “união” e “empatia”, se torna um amálgama de sentimentos e ideias que Celeste não mais compreende, nem parece ser capaz de sentir.

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