- Cultura 24.jan.2019
Família e legado movimentam a trama de “Creed II”
Continuação dá novas camadas aos personagens e fecha ciclo de "Rocky IV"
Relações familiares (especialmente paternas) sempre foram um elemento forte na saga “Rocky”. No quinto capítulo da franquia, Rocky Balboa convive com problemas no relacionamento com seu filho, Robert, e de quebra cria uma relação paterna com seu possível sucessor, Tommy Gunn. O último filme protagonizado por Sylvester Stallone, “Rocky Balboa”, também tratou o assunto. Na obra de 2006, a conturbada relação entre o boxeador que protagoniza o longa e seu filho é um dos focos dramáticos da narrativa.
Em 2015, “Creed” redirecionou a franquia sob o apurado olhar de Ryan Coogler e trouxe novamente a relação paterna como elemento importante na formação de seus personagens. Ali, porém, a paternidade aparecia não como algo a ser consertado ou melhor dialogado entre pai e filho. Na verdade, a paternidade está representada pelo legado: Adonis Creed quer ser boxeador, mas parece preso à sombra do histórico de seu pai, Apollo Creed, que no universo “Rocky” é o maior pugilista da história.
Chegamos então a “Creed II”, o segundo capítulo de “Creed” (e oitavo ambientado no universo iniciado em 1976 com “Rocky: Um Lutador”). Adonis Creed é um atleta reconhecido mundialmente e acaba de conquistar o título mundial. Porém, um novo desafio promete exigir algo a mais do protagonista: Viktor Drago, filho de Ivan Drago (o vilão de “Rocky IV” que assassinou Apollo Creed) vai até a Filadélfia e quer o cinturão de Creed.
O roteiro, co-escrito por Sylvester Stallone e Cheo Hodari Coker, utiliza a estrutura já clássica da saga, o que, de certa forma, engessa bastante a trama, já que há a obrigatoriedade de se seguir um rumo específico. Mas ainda existe espaço para novidades. O tema família é reaproveitado, mas expandido em três frentes: Adonis Creed (Michael B. Jordan) agora está casado e prestes a ser pai, e precisa entender e assumir suas responsabilidades; Rocky ainda não estabeleceu uma boa relação com seu filho e sequer conhece seu neto; Ivan Drago (Dolph Lundgren) e seu filho (Florian Munteanu), Viktor, tentam reconquistar a mãe, que abandonou a família.
A dupla de roteiristas se atrapalha um pouco para desenvolver as três tramas. Praticamente todas as cenas se destinam à construção da expectativa pelo embate entre Adonis e Viktor. Mesmo quando uma cena começa falando sobre paternidade, família ou qualquer assunto relacionado, ela logo é redirecionada para o aguardado confronto, impedindo que as ideias sejam melhor aprofundadas. É como se o universo do filme estivesse tão dedicado ao clímax, que nenhum elemento periférico pudesse ser desenvolvido – o que obviamente acarreta em um subdesenvolvimento dramático que impede maior impacto no ato final.
O diretor Steven Caple Jr., por outro lado, consegue administrar bem as ideias do texto e implementá-las visualmente. O afastamento entre Adonis e sua companheira, Bianca (Tessa Thompson), é competentemente construído. O uso de uma profundidade de campo pequena, que faz com que o protagonista pareça habitar outro espaço enquanto Bianca aparece na parte frontal do plano, é uma escolha interessante. Há também alguns elementos menos sutis, mas igualmente interessantes, como concluir discussões entre Adonis e sua família com alguém fechando portas – ou seja, construindo barreiras.
O diretor Steven Caple Jr. consegue administrar bem as ideias do texto e implementá-las visualmente
Também são utilizados alguns truques interessantes, que ajudam a diferenciar os mundos de Adonis e Viktor. O protagonista, ocupando inicialmente espaços iluminados com cores quentes e vibrantes, é praticamente oposto ao antagonista, que é sempre fotografado em ambientes gélidos e azulados. Há ainda uma inversão interessante quando Viktor passa a mexer com o psicológico de seu adversário: Adonis, então, passa a ser fotografado em planos igualmente gélidos e obscuros, como se sua mente tivesse sido capturada pelo pugilista russo. Há, portanto, um isolamento psicológico para o personagem central, que passa a ser consumido pela ansiedade pela luta.
Esse isolamento, apesar de bem apresentado por elementos da direção e da fotografia, acaba ficando solto, já que o roteiro nunca aprofunda as ideias e motivações de Adonis – o personagem parece se preocupar em deixar um legado como atleta, mas isso nunca é verbalizado por ele, apenas por coadjuvantes com pouca participação. Por outro lado, a trama de Viktor e Ivan é interessante e, melhor do que isso, é bem amarrada com as cenas de combate. É uma triste constatação perceber que, no clímax do filme, o vilão parece ter mais motivos para subir no ringue do que o próprio herói.
É o que acontece em “Creed II”: enquanto Adonis parece lutar por um orgulho bobo e infantil, por um presunçoso desejo por ser grandioso que não condiz com a figura madura que almeja ser, Viktor parece movido pelos traumas do pai, que caiu em esquecimento após a derrota para Balboa. É claro que, numa análise simples, percebemos quão pueril é a motivação de Viktor, mas isso não muda o fato de que ela é crível e funciona dentro da obra. Há desenvolvimento, há uma contextualização maior, até mesmo pelo fato de Ivan ser um personagem já introduzido na obra de trinta anos atrás.
É triste constatar que, no clímax do filme, o vilão parece ter mais motivos para subir no ringue do que o próprio herói
Mesmo com seus deslizes, “Creed II” ainda merece elogios por fazer de sua conclusão uma verdadeira apoteose. Organizando as tramas para que todas tenham sua solução em um curto espaço de tempo, a obra faz com que o ringue de boxe e suas proximidades sejam um espaço para transformação psicológica de seus personagens. Curiosamente, essas transformações não são discutidas por diálogos, mas trazidas apenas imageticamente. O simples ato de se reerguer ou reconhecer a perda de protagonismo são marcas da transformação pela qual os personagens de “Creed II” passam. Uma pena que, como dito, o único núcleo desenvolvido com competência seja o do vilão, o que faz com que o grande momento dramático da obra seja protagonizado por seus antagonistas.
Se não pela trama de seu protagonista, pelos coadjuvantes e pela ação “Creed II” tem, sim, muitos predicados capazes de conquistar o público. Dentro do ringue, os personagens são tratados com muito respeito pela câmera, que, em vez de tentar reconstruir uma luta de boxe pela perspectiva televisiva, faz do espaço um templo para um embate tão físico quanto emocional. Uma pena que, ao fim dos 130 minutos de projeção e dos 12 rounds, o protagonista seja o único personagem que parece não ter crescido como ser humano.