Virtude técnica e crítica cínica à indústria do entretenimento se sufocam em “Birdman”
Alejandro G. Iñárritu faz discurso de catástrofe com debate autoral vs. comercial
“Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” é essencialmente um filme sobre processos. O argumento vale para os mais diversos aspectos, da própria construção cinematográfica, através não apenas, mas principalmente, das manobras para simular um plano-sequência de quase 119 minutos de duração, à essência da trama, focada na preparação de uma peça de teatro dias antes de sua estreia na Broadway.
A análise da obra como um produto autoral, realizado por um Alejandro G. Iñárritu mais autocentrado do que nunca, depende invariavelmente da observação de tais processos, que saltam aos olhos e jamais passam desapercebidos.
No foco de toda a ação está Riggan (Michael Keaton), ator de cinema que fez fama nos anos 90 como protagonista da franquia de super-herói do título e que agora se encontra frustrado e em busca de um evento notável que renda a ele algum respeito, prestígio e dinheiro, perdidos ao longo de duas décadas: roteirizar, dirigir e estrelar uma adaptação para os palcos de “What We Talk About When We Talk About Love”, livro de Raymond Carver. Ao seu redor, dois eixos principais – a família e o elenco – que se esbarram não somente pela interação entre os personagens, mas também por frequentarem o mesmo universo de celebridades necessariamente egocêntricas.
Dono de uma carreira marcada por dramas fatalistas, Iñárritu se desloca para um trabalho aparentemente mais leve, com doses fortes de comédia
Dono de uma carreira marcada por dramas fatalistas (a trilogia formada por “Amores Brutos”, “21 Gramas” e “Babel”, e também o trágico “Biutiful”), Iñárritu se desloca para um trabalho aparentemente mais leve, com doses fortes de comédia e um intuito claro de apontar o dedo para esse segmento em frangalhos de Hollywood que, aqui, se transporta para Nova York.
Se por um lado a trama só se revela mais carregada ao caminhar para o ato final, muito embora já parta dessa premissa um tanto sombria e marcada pela habitual iminência da catástrofe, desde o início o diretor-roteirista deixa à mostra suas semelhanças, em termos de processo criativo, com a figura de Riggan – e também com seus longas anteriores.
Em diversos momentos, o cineasta parece tomar para si esse caráter quixotesco e ególatra ao chamar a atenção para seu próprio esforço no comando da produção. Ainda que o trabalho de Emmanuel Lubezki como fotógrafo seja louvável e autêntico, eficiente ao encobrir os cortes para produzir um plano longuíssimo, equilibrado, porém crescente em intensidade, a câmera acaba por perder seu norte ao prolongar demais determinadas cenas, em alguma medida revelando sua bem ensaiada coreografia, e extrair dos rostos em extremo close alguma emoção mesmo quando eles não têm nada a dizer, justamente pela necessidade de reorganizar a ação em torno deles e desse truque geral.
Por apostar tão firmemente neste artifício visual, o cineasta por vezes se porta como menos interessado nesse projeto de crítica cínica e bastante visceral à indústria do entretenimento e mais dedicado a alimentar o próprio portfólio ao ampliar seu repertório de artimanhas.
É curioso e ligeiramente incoerente apontar esse egocentrismo quando se percebe que Iñárritu oferece a seus atores, com certa dose de generosidade, a possibilidade de preencher com tamanha vivacidade a história. Keaton é uma escolha certeira e que, apesar de já bem-sucedida de imediato graças a seu passado como Batman e recente ostracismo (por mais que se possa argumentar que a ausência de holofotes tenha sido uma escolha pessoal), entrega uma das mais interessantes performances de sua carreira.
É ele o responsável por levar Riggan além de um simples arquétipo de homem envelhecido e em crise de identidade, não obstante se façam presentes de maneira problemática os traços mais óbvios dessa persona – a bebida, a ex-mulher, os conflitos nas gravações, a relação com a crítica. Existe em sua interpretação algo além do estereótipo, detalhes que o longa estranhamente opta por exclamar (os olhos cheios d’água, já no terceiro ato, por exemplo) em função dessa proximidade quase inevitável e agressiva da câmera.
Keaton, já identificado de imediato graças a seu passado como Batman e recente ostracismo, entrega uma das mais interessantes performances de sua carreira
Em diferentes níveis, o mesmo elogio pode ser feito a Edward Norton, que no papel de Mike Shiner funciona como catalisador e elo entre duas pontas da trama. Sua postura combativa com relação a Riggan e o restante do mundo, contrastada com trocas pontuais de afeto com Sam (Emma Stone), filha do protagonista, oferecem uma visão mais relevante do profissional de entretenimento para quem o filme aponta o dedo, um passo além do clichê de ator-problema e acenando com seu passado em “O Incrível Hulk” e “Clube da Luta”, sobretudo quando se pensa nos fantasmas que perturbam o personagem principal.
Os elementos que orbitam essas duas personalidades, porém, sofrem pela necessidade de Iñárritu em pesar a mão até mesmo nos momentos de transição. Lubezki é econômico nas elipses, apontando a câmera para o escuro ou em direção o céu para representar a passagem de tempo, mas o cineasta parece querer intensificar até mesmo estes curtos trechos, mergulhando-os em um insistente som de bateria que permeia todo o filme (obra de Antonio Sanchez) e só revela maior função criativa digna de nota em uma sequência em um estreito corredor a instantes do fim.
É o olhar exagerado e alarmado de um cineasta que acredita ter descoberto a pólvora e o discurso de catástrofe
É também incômoda a histeria que contamina praticamente todos os personagens, desperdiçando nomes como Naomi Watts e Andrea Riseborough, sintoma da obsessão por manifestar urgência da qual o diretor-roteirista ainda não demonstra ter se recuperado após quatro filmes em que tudo está sempre à beira do caos.
A lição sobre economia de roteiro passada por Mike a Riggan logo no primeiro contato entre os dois – algo como “Pare de repetir o que já disse quatro vezes de formas diferentes” – aparenta ter sido completamente ignorada por Iñárritu e as outras seis mãos que escreveram “Birdman”, uma vez que o que se vê em tela é uma ópera de repetições exaustivas e supostamente ácidas sobre o estado da indústria e da arte e a forma como as duas coisas mais se destroem do que coexistem.
O olhar exagerado e alarmado de um cineasta que acredita ter descoberto a pólvora e o discurso de catástrofe berrado por seus personagens se confundem e se igualam em rasidão, inconsistência e pobreza de conteúdo. Sufocados por uma técnica virtuosa que infelizmente se encontra à serviço de uma confusão de vozes desesperadas, indicam uma ignorância que nem mesmo a crítica de teatro vivida por Lindsay Duncan, na trama rendida e surpreendida pelo ato final, seria capaz de elogiar – que dirá tratar como uma nova forma de arte.