“O Mecanismo”: primeiras impressões da nova série brasileira da Netflix
Produção de José Padilha e Elena Soarez que narra os bastidores da Lava Jato será lançada dia 23
Desde a ascensão da Operação Lava Jato, muito especula-se sobre os reflexos da conturbada situação política do Brasil, principalmente na seara cultural. Mesmo que o ideal para retratar fatos históricos no audiovisual seja aguardar haver um distanciamento temporal, que nos permite enxergar as situações com um olhar mais maduro e informado, era esperado que, em um tempo de tanto imediatismo, rapidamente haveria inúmeras obras falando sobre o tema.
Em 2017, o cinema brasileiro viu o primeiro longa-metragem dedicado a contar a história da operação: “Polícia Federal: A Lei é Para Todos”. O resultado, porém, dividiu opiniões: o filme teve a maior bilheteria de um filme nacional em 2017, batendo desde as obras mais elogiadas da temporada, como “O Filme da Minha Vida”, “Como Nossos Pais” e “Bingo: O Rei das Manhãs”, até os filmes com narrativas mais voltadas para o espectador médio, como “Detetives do Prédio Azul”; em contrapartida, a obra dirigida por Marcelo Antunez foi um fracasso na recepção da crítica.
Talvez o grande empecilho de “Polícia Federal” tenha sido a dificuldade de manter um realismo extremo ao retratar um caso que ainda é tão nebuloso e recente na história política do país. A série original da Netflix criada por José Padilha e Elena Soarez, “O Mecanismo”, tem o potencial para acertar onde “PF” errou. “O Mecanismo” traz adaptações livres de situações e pessoas reais. Sai a Polícia Federal e entra a Polícia Federativa; sai Roberto Youssef e entra Roberto Ibrahim; e por aí vai.
Ficção traz liberdade criativa, mas problemas pontuais e conceituais travam narrativa
Com o caminho livre para falar o que quiser sobre quem quiser, “O Mecanismo” traz uma proposta similar ao trabalho mais famoso de Padilha, a saga “Tropa de Elite”. A série original da Netflix foca em desconstruir a corrupção sistêmica do Brasil não apontando dedos para figuras políticas específicas, mas, nas palavras de um dos narradores da série, analisando como a corrupção surge como um câncer que se espalha. É um problema estrutural existente na lógica do país desde o nascimento da nova democracia.
Na construção dessa narrativa, “O Mecanismo” tem prós e contras. Se por um lado, a narração em off existe como uma forma de compreendermos melhor como pensam os protagonistas – que são a equipe da polícia que comanda a operação -, a redundância de alguns comentários torna o recurso, muitas vezes, irrelevante. Nos episódios iniciais, a escolha por manter um estilo de filmagem documental – isto é, com muitos planos criados com câmera na mão e filmando os personagens de perto – ajuda a série a manter uma proximidade com uma estética realista enquanto narra uma história apenas inspirada em fatos.
Há, porém, problemas conceituais que atrapalham muito o desenvolvimento da trama. Nas cenas mais focadas na ação, a escolha de ponto de vista é equivocada. Há, por exemplo, um momento da série em que a Polícia Federativa está a caminho de um escritório em busca de documentos que comprovem lavagem de dinheiro. Paralelamente, os corruptos ligados a este esquema também estão indo em direção ao escritório. Há, portanto, uma estrutura de contagem regressiva na cena, na qual dois grupos disputam a chegada a um ponto a fim de obter ou queimar arquivos. A escolha de “O Mecanismo” é filmar a cena inteiramente sob o ponto de vista dos que querem queimar os arquivos. O resultado é: em vez de acompanharmos agentes da justiça buscando documentos importantes, a tensão é inteiramente criada ao redor da possibilidade dos adversários não conseguirem fugir com a papelada.
Muita narração torna os primeiros episódios cansativos e professorais
Voltando à narração, elemento central no desenvolvimento da série, se por um lado ela se justifica para manter o ponto de vista da polícia mesmo quando retratando apenas os “vilões”, por outro, o recurso torna-se, em certo momento, uma muleta. A história parece depender excessivamente dos comentários dos policiais vividos por Selton Mello e Carolina Abras, mas os personagens, em si, possuem conflitos muito pouco trabalhados. Como resultado, os narradores, nos episódios iniciais, são pouco trabalhados como protagonistas, e acabam soando mais como vozes extra-diegéticas, que não parecem ter relação com os acontecimentos retratados.
A escolha de não ter um protagonista definido é válida, mas acaba tornando o desenvolvimento inicial frio e distante. Há pouco trabalho para criação de empatia e nenhum esforço para encaixar os acontecimentos em uma narrativa de arcos. Pelo fato de “O Mecanismo” trabalhar em cima de eventos e pessoas reais, utilizando versões ficcionais, um trabalho de humanização dos personagens se faz necessário desde o começo, para que o espectador possa criar empatia pelos protagonistas. Em seu piloto, “O Mecanismo” até esboça focar no policial de Selton Mello, o problema é: a partir do segundo episódio, o personagem perde relevância.
Padilha justifica suas escolhas em coletiva de imprensa
Na última quinta-feira, dia 15, José Padilha, Selton Melo, Daniel Rezende e outros envolvidos com “O Mecanismo” participaram de uma entrevista coletiva no Copacabana Palace. Entre os temas mais discutidos, esteve a visão política de Padilha, e o que o idealizador do seriado disse ajuda a entender melhor as intenções narrativas por trás do novo lançamento original da Netflix. Entre perguntas sobre impeachment, golpe e o futuro político do Brasil, Padilha buscou ressaltar que se mantém alheio aos dois lados do atual cenário político: não se vê nem à direita, nem à esquerda (ou, como o próprio gosta de definir, nem liberal, nem marxista).
Apesar do reducionismo de sua visão política – afinal, tentar sintetizar todo o escopo político global em uma rivalidade entre marxismo e liberalismo é, no mínimo, simplista -, José Padilha expressa, além de otimismo, algum realismo diante da Operação Lava Jato. O cineasta afirma que, apesar de ser um meio importante para expor o sistema de corrupção brasileiro, a operação também está sujeita a falhas. Para ele, o mais importante é a conscientização da população e a exposição do esquema, que José considera ser a causa de todas as mazelas do país, desde a educação e segurança às recentes crises econômicas.
A primeira temporada de “O Mecanismo” traz oito episódios que contam, com versões fictícias que referenciam pessoas e eventos reais, os primeiros passos da Operação Lava Jato, e como ela é importante para a desconstrução do mecanismo, que, de acordo com o próprio José Padilha, significa justamente a estrutura de corrupção que envolve desde empresas aos partidos políticos. Tendo episódios dirigidos por nomes como Daniel Rezende, Felipe Prado e o próprio Padilha, a série estréia dia 23 no catálogo da Netflix.