Remake de “O Rei Leão” sofre para escapar da nostalgia auto-imposta

Remake de “O Rei Leão” sofre para escapar da nostalgia auto-imposta

Versão em carne e osso da animação é uma experiência restrita pela necessidade de repetição de cenas plano-a-plano do original e que sobrevive nas poucas adaptações feitas à história

por Pedro Strazza

Dentro da atual dinâmica cada vez mais rígida e despida de magia que toma a rotina fordiana de reempacotar suas animações mais famosas em versões “de carne e osso” digital, a Disney havia encontrado até aqui um único e bem vindo respiro inesperado com a nova versão de “Mogli: O Menino Lobo”, que combinava os dois lados mais desejados pelo estúdio nesta safra de retornos ditados quase que exclusivamente pelo mercado. Além de reimaginar a história para o “mundo real” através das novas tecnologias dos efeitos visuais sem perder de vista a identidade visual do original, o remake comandado por Jon Favreau mantinha intacto os valores mais atribuídos à animação pelo público sem deixar de adequá-los a todas as convenções necessárias, fossem estas pedidas pelo estúdio, o formato cinematográfico ou pelo estado do mundo no qual se inseria.

É justo esta condição de “melhor dos mundos” alcançada com a nova adaptação das histórias de Rudyard Kipling que leva Favreau a estar agora no comando do novo “O Rei Leão” do estúdio, uma das grandes joias da coroa da Disney e o qual oferece neste departamento um desafio de balanço ainda mais complexo que o de “Mogli”. Estamos diante de uma animação que marcou gerações, afinal, pelo componente dramático ancorado no flerte claro com Shakespeare traduzido de forma clara em seus traços cartunescos, uma condição de sucesso impossível de se emular no campo do fotorrealismo onde o remake se vende, mas que precisa ser repercutida de qualquer forma na produção pelo valor nostálgico implícito na lógica de mercado responsável por sua existência.

J.D. McCrary (à esquerda) e Shahadi Wright Joseph gravam suas cenas no filme

Este paradoxo de premissa, um verdadeiro ardil 22 que só o atual cenário cultural nostálgico poderia providenciar, é quem no fundo comanda todos os atos do diretor e do roteirista Jeff Nathanson no projeto, cujos trabalhos soam menos como exercício de adaptação e mais sobre como manter o espectador atento aos movimentos de uma história que se porta de maneira idêntica à da produção comandada por Roger Allers e Rob Minkoff em 1994. Ao contrário de “Mogli”, Favreau aqui não tem como recontar a trajetória semi-hamletiana de Simba (Donald Glover) de uma maneira que não seja aquela vista há 25 anos, mas ao mesmo tempo precisa imbuir aquela trama de uma roupagem moderna e que aproveite todo o potencial da impressionante tecnologia verossimilhante ao seu dispor.

Se na teoria este desejo de preservação extremo do estúdio deve se mostrar bem sucedido nas bilheterias, na prática ele se converte num procedimento cuja lógica só poderia ser limitante à experiência cinematográfica. É como se a cada passo que desse na direção de algo original este novo “O Rei Leão” precisasse tomar três na via contrária, mantendo-se fiel à estrutura da animação até mesmo em nível narrativo e se prendendo à mera repetição cena-a-cena nos momentos mais cruciais do roteiro – toda a passagem do estouro da manada de gnus e da morte de Mufasa (James Earl Jones), por exemplo, funciona praticamente como uma recriação digital do longa de 94, com direito a um uso de zoom out deslocado para registrar a reação traumática de Simba ao momento da morte do pai.

O problema desta lógica é que ela ignora um contexto de adequação dos conformes da animação ao formato do “live-action”, uma ausência de resolução que só ressalta a dependência desta produção à nostalgia de seu público. O que era impactante na versão original dilui-se ao ponto da frieza no remake porque os animais extremamente realistas não acompanham os níveis de expressividade do desenho e portanto não transmitem a mesma intensidade emocional, uma noção que se Favreau é capaz de corrigir no curso entre os eventos (sobram travellings para compensar a diminuição drástica de plano no rosto dos bichos), na hora H ele é comprometido pelas necessidades de nostalgia impostas pelo estúdio.

O filme não tem como recontar a trajetória semi-hamletiana de Simba de uma maneira que não seja aquela vista há 25 anos

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Isso não quer dizer, porém, que Favreau e Nathanson não procurem promover adaptações à estrutura do remake, mesmo que estas sejam extremamente pontuais e estejam restritas a tamanho esforço de repetição. Se nos momentos mais consagrados do original não há nada que possa ser feito a não ser desempenhar uma estratégia similar ao do “Psicose” de Gus Van Sant, nas periferias da trama e em suas escaladas que tanto diretor quanto roteirista atuam no esforço de conferir novos significados à história, seja num propósito de maior contextualização – a inveja de Scar (Chiwetel Ejiofor) sobre o irmão e seu posto de rei ganha alguma profundidade extra na inclusão da questão do casamento de Mufasa com Sarabi (Alfre Woodard), por exemplo – quanto no reparo de estruturas ultrapassadas.

É neste sentido que o longa ganha algum corpo próprio em relação à animação, ainda que continue sendo sabotado nas suas horas cruciais e no fim isso seja apenas mais um exercício de amenização de desdobramentos da produção na mídia. Prova maior disso está no maior registro dos impactos da administração de Scar sobre a terra e em como a moral da história é suavizada de uma relação de posse para uma de responsabilidade, uma mudança de discurso do pai de Simba que ajuda o filme a escapar de suas vertentes (e acusações) neocolonialistas para passar a refletir sobre dinâmicas de poder mais universais.

É nas periferias da trama que tanto diretor quanto roteirista atuam no esforço de conferir novos significados à história

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São estes ajustes menores que ajudam este “O Rei Leão” a se manter minimamente interessante dentro de sua experiência requentada, uma que no mais segue a cartilha maquinária enfadonha vista em conterrâneos como “A Bela e a Fera”, “Dumbo” e “Aladdin”. O “diferencial” da vez é o melhor manejo dos efeitos visuais digitais, os quais se por um lado devem fascinar o espectador fã de documentários e programas sobre a natureza são também responsáveis por quebrar a execução dos números musicais (por mais que se tente, não há travelling capaz de substituir os toques hipercoloridos de “I Just Can’t Wait To Be King” e “Be Prepared”); e a inserção do estrelado elenco sobre os personagens, cujas performances no geral variam entre o deslocamento (Glover e Beyoncé não tem muito a acrescentar a Simba e Nala além do empréstimo de seus talentos aos novos arranjos da trilha sonora) e as sacadinhas ocasionais do processo de casting – uma tendência entre os coadjuvantes, em especial Pumba (Seth Rogen) e Zazu (John Oliver).

A questão que sobra nesta nova encarnação da história, porém, é a mesma que há tempos já habita não apenas a discussão sobre a onda de remakes em live-action da Disney, mas o próprio status de poder da nostalgia enquanto força criativa da indústria hollywoodiana: se o público está sempre disposto a pagar de novo e de novo para ver as mesmas histórias serem contadas, até que ponto elas estarão interessadas em consumir o exato mesmo produto nas telonas, sem qualquer alteração maior capaz de justificar seu tempo além de uma suposta atualização tecnológica? Se o ponto de desgaste existe ou não isso já escapa dos limites do filme, mas a verdade é que aqui este debate atinge ponto crítico.

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