- Cultura 17.fev.2022
“Mães Paralelas” reforça novo momento do cinema de Pedro Almodóvar
Melodrama estrelado por Penélope Cruz existe tanto na manifestação de pesares históricos quanto na interiorização de conflitos emocionais
O tema da maternidade é um que atrai Pedro Almodóvar durante toda a carreira, mas para além da análise interior impressiona que histórias do tipo tenham ganhado tratamentos tão diferentes em seu cinema. Diretor também muito consciente da sua posição de autor, o espanhol manteve uma evolução constante de sua forma desde que estourou pela primeira vez no fim dos anos 80 com “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”. É um movimento muito bem definido como uma interiorização de procedimentos, os quais até então sobreviviam na explosão e contestação.
Mas ainda que hoje seja muito evidente essa transformação do artista ali na virada dos anos 2000, entre a consagração nos meios nobres da indústria e os filmes mais recentes se nota também um segundo refinamento da direção de Almodóvar – talvez mais discreto no processo, embora muito presente. Isso porque da inversão de operação promovida por “Fale com Ela” e “Tudo Sobre Minha Mãe” para os novos “Dor e Glória” e “Julieta” se percebe como o cineasta não hesita em trafegar nos dois sentidos, trabalhando narrativas que servem tanto o alegórico quanto o melodrama tradicional que tanto o agrada. Muito se comentou da fragilidade estrutural de “Julieta” ou do protagonismo de Antonio Banderas em “Dor e Glória” nos respectivos lançamentos, por exemplo, mas parece escapar sempre o comentário do quanto seus intuitos mexem tanto em manifestações interiores dentro de filmes de gênero muito sedimentados, representados em atos como a passagem do tempo pelo uso de uma toalha no primeiro ou das memórias reencenadas pelo segundo.
“Mães Paralelas” é mais um passo tomado nesse caminho. De novo no campo do melodrama, o diretor parte de uma história de amizades e amores cruzados que em tese não deixa de ser uma grande repetição do que já vem fazendo nos últimos vinte anos, inclusive nas parcerias perante e atrás das câmeras – além de nomes como Penélope Cruz, Rossy de Palma e Julieta Serrano no elenco, criativos como o diretor de fotografia José Luis Alcaine e a produtora Esther García de novo colaboram com Almodóvar. Mas há algo de diferente na formulação e mesmo nos rumos do projeto, uma sutileza de olhar ainda mais atenta à expulsão dos eternos tormentos que sempre moveram o artista no leme.
Voltando ao início, a premissa do novo projeto segue o ideário sirkiano de sempre de Almodóvar, acompanhando a história de duas mulheres que por coincidência do destino acabam por parir quase que simultaneamente no mesmo hospital. Também mães solteiras, a fotógrafa Janis (Cruz) e a jovem Ana (Milena Smit) acabam por nutrir uma amizade a partir do encontro, mas perdem o contato e se reencontram alguns meses depois em situações muito distintas: a primeira suspeitando de que o filho não é seu e a última sozinha com a cria falecida.
É dessa situação – e do desenrolar de Ana ir morar na casa de Janis – que o diretor trabalha a relação das duas protagonistas menos por uma questão dramática de fato que por noções de territorialização, uma manobra inesperada dado o cenário. “Mães Paralelas” abre e fecha em torno da discussão de uma fossa que serviu à ditadura militar do general Franco para enterrar rebeldes durante a Guerra Civil Espanhola, mas fora desses momentos o tema existe na narrativa apenas como conceito abstrato, pertencente ao espectador para que este por sua vez aplique-o ao drama encenado. O corpo do filme se revela a partir disso, inclusive, sobretudo em como os dilemas enfrentados pela personagem de Cruz contradizem sua posição de luta pela preservação da memória.
O tema histórico existe na narrativa como conceito abstrato, pertencente apenas ao espectador
A razão do melodrama então é externa ao eixo de cena, e daí que se começa a notar os méritos da direção em conseguir organizar a narrativa dentro de uma proposta tão peculiar. Ainda mais porque Almodóvar arrisca bastante no trabalho de montagem, com flashbacks súbitos que levam ao pé da letra o “paralelas” do título para reforçar o construto em movimento. E para além do admirável trabalho de montagem de Teresa Font e da trilha sonora sutil de Alberto Iglesias, vale destacar sempre o esforço de Cruz e Smit para compor suas personagens dentro de tamanhas complexidades, permitindo que o espectador acompanhe cada passo do drama tanto por uma perspectiva interiorizada (a situação materna) quanto alegórica (a questão da memória que assombra os arredores).
Vale preservar nessa hora o mistério de várias das ditas reviravoltas do filme, mas também é justo comentar que nenhuma delas soa exatamente chocante porque é dessa posição de consciência que Almodóvar permite ao público ligar sozinho os pontos na estrutura. É um jogo confesso do princípio, mas que não assume o artificial em momento algum até por questão de legitimidade dos atos – não faria sentido fazer um filme sobre a História a partir de uma condição que nega a trama a quem assiste, afinal.
A razão do melodrama é externa ao eixo de cena, e daí se começa a notar os méritos da direção
É justo nestas pequenas constatações que se entende o atual novo momento do cinema de Almodóvar. “Mães Paralelas” não cabe à fase inicial do diretor por ser muito resolvida no filme de gênero que prioriza a absorção, mas tampouco se adequa a outras de suas produções recentes por entender que a alegoria é uma ferramenta útil para a demonstração das pequenas torturas emocionais desenvolvidas. O diretor parece se entender agora nesse vaivém narrativo, extraindo o melhor possível das duas condições em obras que se saem bem tanto na abstração quanto na materialidade dos atos.
Dentro disso, é muito preciso que este novo filme se encerre não pela resolução do melodrama – até porque o cineasta permite que as protagonistas acertem as contas sem grandes efeitos – mas pelo registro emocional do viés histórico buscado. A imagem final do longa reforça não apenas a mensagem de Almodóvar com a trama, mas as dores envolvidas no resgate e correção de atos que permeiam todos os lados de sua obra. A maternidade aqui é a base de tudo, enfim.
“Madres Paralelas” está em exibição cinemas brasileiros e chega à Netflix nesta sexta-feira, 18 de fevereiro.
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