- Cultura 5.mar.2019
“Capitã Marvel” é uma história de origem dos conflitos internos do universo Marvel
Primeiro filme solo de uma super-heroína no Marvel Studios instiga pelos alicerces que constrói para a cronologia, mas mostra dificuldade para lidar com os velhos formatos narrativos do estúdio
Com dez anos de vida e uma cronologia meticulosamente tecida ao longo de vinte produções para o cinema e dúzias de séries de TV, é inegável hoje a afirmação de que o Marvel Studios alcançou o sucesso – entre outros tantos fatores – por meio de uma ampla e ávida base de fãs de sua linha do tempo de histórias. Mas enquanto a “ideia” exposta pelo Nick Fury de Samuel L. Jackson no já distante ano de 2012 rendeu uma árvore carregada de frutos, com o estúdio provando seguidas vezes nas bilheterias a força de um universo cinematográfico que só tem a oferecer novas franquias ao público e executivos, é no mínimo curioso observar como a grande trama do tal “MCU” ainda não deixa de se comportar como a típica série de filmes hollywoodiana no que consta a sua relação com o tempo, projetando seus eventos para frente e relegando ao passado o mistério a ser revelado quando preciso.
Mais interessante nesta lógica, porém, é reparar como além de obtuso os antepassados da linha do tempo da Marvel estão quase sempre relacionados de algum jeito a figuras oficiais e militares, seja de forma direta como toda a origem do Capitão América ou mesmo nos flashbacks de “Homem-Formiga”, “Pantera Negra” e de todos os “Homem de Ferro”. Sendo a segunda produção do estúdio ambientado todo fora da realidade atual (antes só “O Primeiro Vingador” carregava esta distinção), “Capitã Marvel” não deixa de seguir esta correlação militarista histórica combinando-a à tendência espacial atual da produção do Marvel Studios, mas seus meandros temáticos a princípio sugerem uma abordagem que é um pouco diferente da repetição de valores e se aproxima de um caráter revisionista do que veio antes do tempo dos super-heróis – até porque estes dois mundos, mesmo visando uma mesma questão de segurança, não poderiam coexistir de forma tão interligada assim.
Não que os filmes da empresa já não tenham proposto este debate antes, é bom ressaltar. Dos dois primeiros “Homem de Ferro” a “Thor: Ragnarok”, passando por toda a trilogia do Capitão América, esta cisão entre as instituições nacionais de segurança e o modelo de super-heroísmo proposto pelo MCU é uma espécie de constante necessária ao funcionamento destas histórias, até porque o arco de seus protagonistas no geral moram neste conflito entre a defesa do sistema e a proteção da sociedade. Basta observar, por exemplo, as semelhanças nutridas entre as produções mais “políticas” do Marvel Studios: o drama de “Pantera Negra” sobre abrir ou não Wakanda ao mundo e os embates centrais de “O Soldado Invernal” e “Guerra Civil” se parecem neste sentido de encruzilhada, das questões de defesa do governo entrarem em rota direta contra as necessidades sociais, tendo o herói, voz da justiça e da razão, como verdadeiro juiz de um tribunal de valores de sua comunidade.
O que “Capitã Marvel” tem de mais vital a oferecer nesta discussão, sob este ângulo, é justo a perspectiva histórica implícita de sua premissa, ambientada inteira nos anos 90. Se para o estúdio este retorno de quase 25 anos ao passado serve como forma de nova exploração do humor nostálgico que norteia a indústria do entretenimento nestes anos 2010 para dar um gosto diferente à introdução de uma nova heroína (e que é materializado em piadas como a lentidão da internet ou a moda grunge), aos diretores Anna Boden e Ryan Fleck ela se converte numa espécie de investigação das estruturas deste grande universo, uma não tão distante no tempo a ponto de fazer a história estar numa “época remota”, mas próximo o suficiente da realidade presente para o espectador compreender o que fez as engrenagens das dinâmicas atuais entrarem em movimento.
Não chega a ser uma surpresa, então, que o longa exista tanto sobre as relações de contexto da década ao qual se insira, mesmo passando grande parte do tempo no cenário fantasioso da guerra espacial entre as raças alienígenas kree e skrull. A grande jogada inicial do roteiro de Boden, Fleck e Geneva Robertson-Dworet, inclusive, é a de aproveitar o ponto de partida amnésico da protagonista Carol Danvers (Brie Larson) sobre sua origem como gatilho para o próprio desconhecimento do público quanto ao passado da linha do tempo; quando já na reta final do primeiro ato – usado para introduzir o imaginário fantástico habitual das produções do Marvel Studios – a guerreira cai por acidente na Terra, depois de uma fuga destrambelhada de uma nave inimiga, o espectador se assemelha a seu olhar perdido na visão de um lugar no tempo e espaço diferente daquele que está habituado.
⚠️ AVISO: Contém spoilers
O que “Capitã Marvel” tem de mais vital a oferecer é a perspectiva histórica implícita de sua premissa
É a partir desta chegada que Boden e Fleck passam a trabalhar em cima destas razões de contexto, de maneira silenciosa incorporando grande parte dos elementos do universo Marvel a noções geopolíticas da época. A maior destas “apropriações” sem dúvida é a inversão do conflito entre krees e skrulls, que das grandes proporções maniqueístas do início se revela na verdade uma guerra de aniquilação dos primeiros sobre os segundos movida a motivos não tão distantes dos nutridos pelos Estados Unidos no Oriente Médio naqueles anos. A reviravolta instiga exatamente pelo choque da posição de Danvers – uma militar humana superpoderosa “adotada” pelos krees – contra a instituição e os valores que defendia, e a crise subsequente deste processo em teoria transforma o filme nesta grande história de origem dos valores “rebeldes” dos protagonistas heroicos da Marvel.
Esta justificativa no papel soa fantástica enquanto construção temática por demonstrar por A mais B as raízes de todos os conflitos posteriores de todas as grandes aventuras produzidas pelo estúdio, mas na telona sua execução mostra-se um tanto truncada em virtude dos anseios da narrativa buscada nos projetos do Marvel Studios nestes filmes de origem. Mesmo que se busque um caminho próprio, o rigor pela manutenção das convenções da tão falada “fórmula Marvel” acaba funcionando de limitação aos propósitos de “Capitã Marvel”, um embate que aqui só tem a perder para qualquer uma das partes envolvidas.
Isto explica, pelo menos, porque certas peças da narrativa elaborada por Boden e Fleck soem tão genéricas mesmo quando buscam alguma particularidade. Enquanto o skrull Talos (Ben Mendelsohn) e o kree Yon-Rogg (Jude Law) desempenham bem suas posições iniciais de nêmesis e mentor, por exemplo, a mudança de rumo que os transforma respectivamente em líder refugiado e vilão perde força na perda da relação maniqueísta implícita – em especial para o personagem de Law, cuja performance parece murchar depois de esclarecido sua função real na trama. Contradição similar entre gênero e alegoria mora na erupção final dos poderes de Danvers quando ela enfim confronta a armada de Ronan (Lee Pace) em defesa da Terra: por mais que a narrativa de afirmação feminina se solidifique no momento (que também consolida a moral explícita no “eu não preciso de sua aprovação” dito pela heroína), não deixa de ser um tanto desconfortável um longa que se veste e conversa tanto com a imagem militarista dos Estados Unidos resolver uma situação de bombardeio com uma demonstração simbólica de força bélica ainda maior que garanta uma nova “segurança” ao mundo e aos povos oprimidos.
O rigor das convenções da “fórmula Marvel” acaba limitando os propósitos de “Capitã Marvel”
Se este estranhamento por um lado mina grande parte da potência do filme, ele também acaba por enfraquecer o jogo de simbolismos da direção de Boden e Fleck a um ponto em que tudo se banaliza e começa a ficar um tanto reiterativo de certos aspectos do cânone, ainda mais por conta da posição histórica assumida pela produção. Isso talvez explique porque “Capitã Marvel” orbite tantas vezes entre a esperteza de uma narrativa de reconfiguração de elementos da mitologia e a burocracia do preenchimento automático de lacunas do cânone, quase sendo superior a um “Rogue One” ou “Han Solo” ao ora ou outra escapar da condição assumida de “feito aos fãs” para fazer algo mais de seu planejamento inicial como fanfic.
O problema desta última afirmação, porém, é este “quase”. Em determinada altura, os dois diretores não parecem ter muito a fazer além de abraçar a ligação de pontos, expondo na tela as respostas de questões como a origem do tapa-olho de Fury (vivido por Samuel L. Jackson sob uma maquiagem digital bastante natural, vale dizer) ou o paradeiro do Tesseract sem conseguir fazer algo além deste consumo imediato. E quando o agente da S.H.I.E.L.D. enfim senta atrás de sua escrivaninha para fundar o projeto que norteia todo o resto da cronologia, a sensação que fica é menos de completude e mais de complementação.