- Cultura 13.jun.2017
“Z: A Cidade Perdida” é um dos grandes filmes do ano
Em seu sexto e mais ambicioso longa, James Gray faz aventura clássica com uma voz original
À primeira vista, “Z: A Cidade Perdida” é a saga de um homem branco que deixa a civilização europeia para explorar a floresta amazônica. Se o conceito já não parece moderno, a maneira como o diretor James Gray enquadra os acontecimentos confirma a sensação inicial de que aquilo poderia ter sido rodado pelo menos quarenta anos atrás. A impressão é comum quando se trata dos filmes do cineasta novaiorquino: quando se fala dele, “à moda antiga” costuma ser aplicado em vários sentidos diferentes. Em comum entre admiradores e detratores, o fato de que nada chama mais a atenção do que seu estilo clássico de filmar.
É como se todos os seus seis longas pertencessem a outra época. Esse último, o maior deles em escala e ambição, não escapa à regra. O ritmo não é necessariamente lento, mas cada imagem exige um olhar paciente, como se a própria composição dos planos (a posição da câmera, o movimento dos atores em cena, a combinação de luz, poeira e fumaça que o uso da película enaltece) demandasse mais tempo e reflexão. Nos momentos em que recorre aos diálogos, que lidam tanto com emoções quanto com decisões práticas, a entonação estudada e a pronúncia pausada de cada palavra reforçam essa ideia de que há algo mais acontecendo ali, além da superfície.
A obsessão do diretor pela recriação de épocas e locais específicos, traço aprimorado no decorrer da carreira, também favorece esse tipo de ambientação. A capacidade de imersão de “Z” depende dessa construção cuidadosa dos espaços. Os casarões decadentes da Europa não dão ao protagonista o que ele espera e necessita, e isso faz com que ele se sinta imediatamente atraído pela imensidão das paisagens da América, mesmo que a possibilidade de fracasso também em outro continente não seja descartada.
Na maior parte do tempo, vemos o mundo com o mesmo senso de descoberta do protagonista, Percy Fawcett (Charlie Hunnam), entre o receio e o encantamento. De início, ele é mesmo um colonizador, um sujeito da metrópole que deixa para trás a esposa e os filhos em busca da realização pessoal. O que diferencia sua aventura de tantas outras é justamente o modo como sua visão sobre a selva se desenvolve e o ponto que atinge mais à frente: a obsessão não é um fato pré-existente, uma característica dada de sua personalidade, mas algo que surge por motivos específicos e que se modifica diante do contato com o diferente. Como um trecho anuncia, o explorador é capaz de encontrar beleza na viagem e de se entregar a ela sem condescendência, mais ou menos como faz o filme diante do desconhecido.
Ao contrário do que se imagina, o rigor da narrativa de Gray não limita suas pretensões. A forma não é limitadora, mas libertadora: a partir de uma premissa simples, o diretor abre o leque para questões bem particulares e cada vez mais arriscadas. Seus interesses, quando não abertamente subversivos, servem para adicionar novas camadas à típica jornada do herói e transformar “Z” em uma obra bastante especial, mesmo quando lida com elementos frequentes em sua filmografia, como desejo e destino.
A capacidade de imersão de “Z” depende da cuidadosa construção dos espaços
Nas idas e vindas através do oceano, as coisas se desenrolam como num grande romance. O diretor, que assina o roteiro baseado no livro de David Grann, preserva uma estrutura familiar para se dedicar ao subtexto. Em muitos sentidos, ele faz o caminho inverso de vários colegas, acostumados a experimentar na forma, mas conservadores no discurso — sua missão não é reinventar a roda, mas usá-la para chegar a lugares nunca visitados.
Mesmo com tempo restrito de tela, Siena Miller toma para si o controle das cenas em que aparece
Assim, elementos como gênero, classe e etnia passam a ocupar o centro da narrativa, o que possibilita que uma série de novas dinâmicas ganhe forma. É raro, por exemplo, que filmes do tipo se dediquem à figura da esposa, aqui alguém com opiniões definidas e vontade própria. A consideração por sua trajetória, que corre em paralelo à do marido, é um traço que o longa confirma ao permanecer com ela até o plano final. Mesmo com tempo restrito de tela, Siena Miller toma para si o controle das cenas em que Nina aparece, construindo uma personagem forte, cuja tragédia efetivamente importa para o espectador — a miséria dele, Percy, não se sobrepõe à dela, mas o filme não se desvia da realidade de que suas decisões são a razão fundamental para a infelicidade da mulher.
Poucas coisas são tão fascinantes em “Z” quanto a maneira como essas temáticas se infiltram no próprio desenrolar da história. O fato de não possuir honrarias no serviço militar e a ausência de um sobrenome forte — no limite, sua posição na sociedade — são os fatores que levam Percy a viajar até a floresta em primeiro lugar; e a questão racial é o que faz com que ele deseje permanecer por lá. Sua posição diante dos nativos desafia, inclusive, a hierarquia consolidada na época, quando as populações indígenas sequer tinham sua humanidade reconhecida pelos europeus.
Por mais que os retornos à terra natal provoquem quebras na trama, adiando seguidamente a revelação sobre o que existe no alto do rio (sobre a cidade perdida do título, no fim das contas), não surpreende que Gray decida voltar para casa vez ou outra. Em seus trabalhos anteriores, é comum que as relações familiares definam os rumos dos personagens, seja pela obediência a determinadas convenções ou pelo desafio a esses mesmos preceitos.
O que o diretor James Gray faz é diferente de tudo o que existe no cinema americano recente
Seus dois filmes mais populares até hoje lidam diretamente com esse embate. Em “Os Donos da Noite”, o protagonista que se envolve com criminosos é a ovelha negra de uma dinastia de oficiais de polícia que tem como estrelas seu pai e seu irmão; em “Era Uma Vez em Nova York”, uma imigrante católica polonesa é levada a tomar decisões impensáveis para resgatar a irmã, separada dela na chegada aos Estados Unidos. Ambos usam molduras clássicas no entorno de histórias íntimas que buscam constantemente fugir das tradições.
Assim como seus antecessores, “Fuga para Odessa” e “Caminho Sem Volta”, o primeiro dispõe de elementos do gênero e esbarra em aspectos dos antigos longas de máfia, mas encontra uma voz original sempre que se volta para o emocional dos personagens, frequentemente divididos entre o que desejam e o que a vida e os outros esperam deles. O segundo segue confrontando pressões externas e vontades internas, mas deixa para trás as questões de polícia para se desdobrar como um típico melodrama — preservando uma das principais marcas de “Amantes”, um enredo de romance também mais complexo do que as aparências indicam.
No fim dessa caminhada, “Z” aparece com qualidades parecidas. É inegável que se trata de um filme de maior tamanho, algo que a embalagem de aventura já sugere, mas nada disso ofusca as preocupações formais e temáticas do diretor. Especialmente no desfecho, quando a loucura da selva invade todo o resto, o que Gray faz é diferente de tudo o que existe no cinema americano recente. Como se estivesse perdido no tempo, ele toma decisões que, mesmo discretas, não parecem interessadas apenas em minimizar riscos, e isso não é pouca coisa na indústria atual.