Um salto alto perdido na rua

Um salto alto perdido na rua

por Ricardo Seola
disney

Dia desses, recomendando livros à amigos, percebi que não lembrava praticamente nenhuma linha inteira de nenhuma obra. O que eu lembrava dos livros eram as pequenas cidades, do frio que fazia no inverno, o pé direito da sala do protagonista e até mesmo a textura das cortinas. Mas não vi nos livros essas coisas. Talvez, essas coisas, as páginas dos livros não tenham nem mesmo me sugerido. Mas essa foi a história que criei pra mim, e pra mim é a história real.

É recorrente: Quando ouço “High and Dry” eu me lembro perfeitamente de voltar pra casa de skate no fim de tarde de um sábado chuvoso, quando eu ainda morava na Califórnia. Acontece que eu nunca andei de skate, muito menos morei na Califórnia.

Não entra ciência nesse tema, que pouco tem a ver com razão. Não vem ao caso explicar por que acontece, mas acontece, e todo designer deveria levar isso em consideração: o universo que a gente inventa é mais real do que o universo em que a gente vive. E é dele que iremos lembrar no futuro.

Já dizia o Professor Martens*:

“Não existe em nenhuma mulher toda a mulher que existe em um salto alto perdido na rua”.


E o Retail Design com isso?

Andar pelo Brasil pesquisando ponto de venda é, em geral, decepcionante, e na maioria das vezes o motivo é o mesmo: parece que ninguém quer convidar o consumidor pra participar. É um monólogo.

Até pouquíssimo tempo atrás éramos um país relativamente pobre, e tudo leva a crer que nosso complexo de inferioridade e raro acesso ao que outros tinham em abundância, tenham feito com que buscássemos ingenuamente uma auto-afirmação de sessão da tarde, de Disney e Beverly Hills. Crescemos achando que um conto de fadas pode (e só pode) ser real se houver um enorme castelo.

Recentemente um amigo europeu, arquiteto, veio nos visitar no Brasil e passeando por um ponto turístico de Florianópolis constatou: “isso tudo parece o cenário faroeste de um parque de diversões”.

É mais ou menos assim: Se for restaurante Mexicano, tem mariachi. Se for moda Brasileira, tem calçada de Copacabana. Se for loja de artigos esportivos, é assustador: tem pista de corrida, quadras e vendedores com apitos (!).

Querer replicar perfeitamente uma realidade externa, seja ela qual for, em um projeto de design, acaba com tudo que o projeto deve ter de mais precioso: a autenticidade. Até porque, no final das contas, se estamos falando de retail design, estamos falando – ou deveríamos – de construção de marca.

Assim como em um livro ou em uma música, a história real de um projeto de design é a história que criamos pra ele. É Gestalt. É Ganzfeld. A nossa mente é viciada em sensações, e se não há nada pra sentir ela mesmo as cria.

Lojas com menos referências óbvias e mais histórias pra contar, por favor.
Porque um enorme castelo não faz do seu ponto de venda um conto de fadas.

“É como se o homem, que permanece ali encantado com aquele salto alto, fosse naquele momento ele mesmo” continuou o Professor Martens. “E tivesse a sua própria biografia. A sua própria memória”

* O Professor Martens é um personagem do livro City (Alessandro Baricco), muito provavelmente meu livro preferido.

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