"Fazíamos entretenimento e fizemos um documentário": como "O Céu da Meia-Noite" criou esperança no fim do mundo

“Fazíamos entretenimento e fizemos um documentário”: como “O Céu da Meia-Noite” criou esperança no fim do mundo

Produtor Grant Heslov e elenco revelam os desafios que George Clooney enfrentou para trazer à vida a fábula apocalíptica do novo filme da Netflix

por Pedro Strazza
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Imagem: THE MIDNIGHT SKY (2020) Producer Grant Heslov, Felicity Jones, Tiffany Boone and Director George Clooney on the set of The Midnight Sky. Cr. Philippe Antonello/NETFLIX

A premissa de “O Céu da Meia-Noite” é apocalíptica de duas maneiras distintas, embora situadas dentro do mesmo cenário. De um lado, acompanha-se a história de um solitário cientista num fim do mundo gelado, voluntariamente deixado para trás pela humanidade para monitorar e ajudar quaisquer espaçonaves que carregam as esperanças finais de sobrevivência da espécie. Do outro, a trama de uma dessas naves mas enviadas muito antes do fim, que retorna ao planeta após uma missão de exploração sem saber que não há um lar para se voltar.

Não bastando o lançamento em dezembro, o tom de fábula ajuda a criar a sensação de que o filme da Netflix foi pensado já com a pandemia em movimento. Do isolamento do “último homem na Terra” à desconexão inicial dos astronautas com o status do mundo, é difícil não ver as preocupações e ânsias dos últimos meses refletidas na narrativa da ficção-científica, em especial porque a quarentena e o distanciamento social não deixam de trazer à tona uma introspecção que é muito parecida com a dos personagens do longa.

Essa projeção intriga, até porque tudo que é visto no filme foi registrado pouco antes do coronavírus se instalar no planeta e enclausurar a população a seus respectivos lares. “Nós acabamos de filmar no começo de fevereiro e a Netflix desligou a produção” rememora George Clooney, diretor e principal astro do projeto; “Eu lembro de chegar em casa em Los Angeles junto de Grant Heslov e eles dizerem ‘Ok, esta questão do Covid é real e nós talvez tenhamos que paralisar os trabalhos na sala de edição'”.

O status do mundo não foi o único choque daquele dia para o ator. “Eles ainda buscaram tranquilizar a gente dizendo ‘Não se preocupe, ele apenas afeta os mais idosos’ e eu pensei ‘Ok, apenas os mais idosos’, mas aí eles disseram que qualquer um acima de 55 anos estava na zona de risco e eu fiquei ‘Pera, que??'” brinca, do alto de seus 59 anos.

Para além do trauma de Clooney em ser chamado de velho por Hollywood, o fato é que a história de “O Céu da Meia-Noite” começa bem antes da pandemia – e ao contrário do que se pensa, não pelo livro de Lily Brooks-Dalton que serve de base para a produção, “Good Morning, Midnight”. “Nós lemos o roteiro antes de ler o livro” afirma o produtor Grant Heslov ao B9; “Mark Smith tinha escrito este lindo roteiro e nós queríamos fazer algo que fosse maior e tivesse uma espécie de significado mais profundo”.

Também foi decisivo para a escolha do projeto o nascimento de Alexander e Ella, filhos de Clooney com a advogada Amal Alamuddin: “Foi muito significativo para ele porque de certa forma é uma história sobre paternidade falha, sobre reconexões e redenção. Acho que para nós dois isso bateu muito forte” diz.

Da esquerda para a direita: George Clooney, Tiffany Boone e Grant Heslov

Heslov sabe muito bem o que interessa a Clooney. Um dos mais antigos e mais próximos colaboradores do diretor, o produtor trabalha com o ator desde que ele saltou de vez para a cadeira de direção com “Boa Noite, e Boa Sorte” em 2005, tendo não apenas produzido quase todos os seus trabalhos como atuado de roteirista na esmagadora maioria destes. Isso inclui os três últimos longas do artista, com todos – “Tudo Pelo Poder”, “Caçadores de Obras-Primas” e “Suburbicon” – tratando diretamente de questões políticas de um jeito ou de outro.

A busca de ambos por algo mais profundo deriva um pouco desta reincidência, vale acrescentar. “O engraçado é que quando você faz algo como ‘Boa Noite, e Boa Sorte’, todo mundo te procura com sua espécie de filme político difícil em preto e branco, e você meio que já fez aquilo uma vez sabe?” comenta Heslov; “Nós sempre tentamos fazer o próximo filme bastante diferente do anterior porque, bem, é mais divertido”.

Mas mesmo em um gênero muito diferente Clooney não abandonou sua verve política. “Quando nós começamos a discutir o filme, nós queríamos falar sobre o que o ser humano é capaz de fazer à própria espécie e a humanidade” afirma em coletiva à imprensa, realizada por meio de uma videochamada no começo do mês; “Durante minha reunião com a Netflix pra falar de minha visão sobre o projeto, eu sabia que estava tratando da ira, ódio e todas essas coisas que tem rolado em nossas vidas não apenas nos Estados Unidos, mas no mundo. E sobre como se isso durar pelos próximos 30 anos, não é muito difícil de imaginar que negando a ciência e o clima nós possamos destruir tudo de uma forma gigantesca”.

É claro que nem mesmo o diretor poderia imaginar que todo este debate se materializaria de forma tão pungente na realidade de 2020, uma conclusão que o elenco também partilha. Para Demián Bichir, em especial, o reflexo do filme no mundo de hoje é forte. “É o que eu chamo de um grande ajuste de contas, como se a mãe natureza nos dissesse ‘vá para seu quarto e não saia até pensar bem sobre tudo que fez, ok?'” brinca o ator, que faz um dos engenheiros da nave cuja solidão é bastante sentida no curso da narrativa: “Eu me senti próximo ao personagem porque ele não tem mais nada a perder, e por isso ele está ali e mostra tanta esperança”.

Felicity Jones é ainda mais enfática na questão: “Tem sido extraordinário ver o quão relevante o projeto se tornou, muito por conta da situação em que nos encontramos atualmente. Digo, nós achamos que fazíamos entretenimento, mas agora fizemos um documentário” comenta no evento.

Demian Bichir (à esquerda) conversa com George Clooney no set

Enquanto a pós-produção se deu toda ao longo dos últimos meses de pandemia, as filmagens foram rápidas graças à velocidade de Clooney para filmar cenas, algo muito auxiliado por seu hábito de começar a montar as cenas já no set. Com a produção demorando 60 dias, isso não apenas ajudou “O Céu da Meia-Noite” a evitar a realidade do distanciamento social como também controlou os gastos, com o orçamento final ficando na altura dos US$ 100 milhões. “Ele aprendeu isso com Steven Soderbergh e os irmãos Coen” confirma Heslov; “Eles também são pessoas que filmam muito rápido porque eles trabalham com um ponto de vista muito forte, então eles sabem exatamente o que querem”.

Esta dinâmica também é refletida no modo de operação do produtor, que em determinado momento classifica seu trabalho de forma bastante essencialista, de “apoiar o diretor e providenciar tudo que ele precisa”. “Nós tentamos não gastar muito dinheiro quando estamos trabalhando em filmes” brinca; “Eu preciso disso e não preciso daquilo. Eu não preciso construir o set inteiro, eu só preciso apenas daquele pedaço. Então quando você começa a equilibrar estes custos de produção com o custo dos efeitos visuais e economiza com a quantidade de dias usados para filmagens, essas coisas se somam e você acaba mantendo os gastos bem baixos”.

Isso não quer dizer que a produção tenha sido um mar de tranquilidade, até porque metade das filmagens foram feitas em geleiras na Islândia. Mesmo com a experiência de filmar por quatro meses numa Berlim tomada por um inverno que nunca revelou a luz do Sol durante a realização de “Caçadores de Obras-Primas”, Heslov afirma que nada que ele e Clooney haviam feito até então os preparou para aquele momento: “Toda manhã nós tínhamos que dirigir uma hora, uma hora e meia nestes veículos especiais que modulavam o ar nos pneus para navegar pela neve, e aí quando você chegava na geleira ainda precisava viajar em motos de neve e outros veículos especiais para alcançar o set” relembra.

A temperatura abaixo de zero e os fortes ventos da região levaram os dois a trabalhar com uma equipe mínima e bastante experiente com o clima local, mas Clooney ainda buscou acrescentar detalhes onde era possível. “Quando você vê aqueles pingentes de gelo no rosto dele, aquilo é real” segundo Heslov, “ele pegava uma garrafa de água, despejava algumas gotas na cara e depois dirigia com a moto para ajudar a congelar a água”.

Apesar do gelo na Islândia e da pandemia, porém, o percalço mais curioso de toda a produção foi mesmo a forma como Clooney lidou com a gravidez de Felicity Jones, que aconteceu logo após o início das filmagens. Ele e Heslov já estavam trabalhando nas geleiras há três semanas quando receberam a notícia da atriz, que a princípio foi encarado como um obstáculo: “Nós primeiro pensamos ‘bom, nós vamos usar ela’ e que nós podíamos esconder a gravidez a partir de efeitos visuais” rememora o produtor, que também confirma que o plano rapidamente se mostrou frágil demais para o filme; “Nós terminamos o segundo dia de gravações com ela e a gente via que não ia dar certo. A gravidez mudou a forma como ela atuava de uma forma que ela, bem, ela era uma mulher grávida, ela se movia fisicamente como uma mulher grávida. Na gravidez você se move diferente, tudo é diferente”.

“Nós tentamos negar por um momento, fingir que aquilo não tinha acontecido” comenta Clooney durante a coletiva, onde também revela que todo aquele esforço inútil o levou à decisão de incluir a gestação dentro da narrativa. “Tudo isso acabou nos levando à ideia de que a melhor versão das coisas é quando você as aceita e não as encara como problemas” diz o diretor; “Assim nós decidimos que Wilbur [nome dado ao filho da atriz] se tornaria um personagem da tripulação daquela nave, e todos os cinco atores meio que se juntaram para protegê-la”.

O processo envolveu algumas reescritas do roteiro e um cuidado maior da produção para filmar a atriz nas cenas “espaciais” com os cabos de suspensão, mas os efeitos da inclusão deram uma nova perspectiva para Clooney sob o projeto que realizava até então. Foi durante as gravações da cena do ultrassom, inclusive, que o diretor percebeu o poder da presença daquele feto: “Eles estão esperando ouvir qualquer som, qualquer sinal de vida que venha de dentro da Felicity, e foi ali que eu me toquei que a história havia se tornado infinitamente mais esperançosa, havia uma luta real pela ideia de que a humanidade era ou não era digna do esforço de se salvar” afirma Clooney; “É um filme sobre arrependimento por conta do personagem que eu interpreto, mas ele consegue uma redenção, e eu acho que redenção é uma parte importante que nos invade e dá esperança”.

Já Jones relembra o momento de uma visão mais prática. “De início eu achava que ia ser demitida” comenta a atriz; “Mas quando George tomou a decisão e me encorajou a assumir a gravidez no filme, ele tornou o trabalhou muito mais confortável. E eu tenho que agradecê-lo porque bem, quando eu estava tentando não parecer grávida, eu estava me negando um monte de bolo de chocolate”.

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