- Cultura 23.out.2020
“Vestir o amor”: como o figurino de uma deusa se tornou elemento crucial de “A Caminho da Lua”
Ao B9, a estilista Guo Pei e o diretor Glen Keane revelam os bastidores do processo criativo do visual de Chang'e, uma das personagens mais importantes da nova animação da Netflix
Demora cerca de 30 minutos até que a protagonista Fei Fei enfim levante voo em “A Caminho da Lua” e conclua o movimento inscrito no título do filme, apenas para descobrir que o satélite da Terra esconde um mundo fantástico em seu lado mais escuro. Batizado de Lunária, a cidade de cores e formas plásticas logo revela ter como rainha e centro gravitacional a deusa Chang’e, a mesma das histórias contadas pela mãe da jovem menina em sua infância e que agora ela busca comprovar a existência ao pai e a família.
O que acontece a seguir na história, porém, é tudo menos o que Fei Fei (e o espectador, por consequência) esperam presenciar. Encaminhada junto do novo irmão, Chin, a um grande salão do palácio central, a garota em poucos minutos é apresentada a Chang’e de uma forma espetacular, por meio de uma apresentação musical pop da própria com todas as extravagâncias que tem direito. A deusa canta, dança, leva a torcida à loucura e… usa roupas que fogem completamente à concepção divina inicial, mais próximos do figurino de uma estrela que os personagens e o público assiste.
Muitas coisas saltam aos olhos do espectador neste momento, mas a questão dos figurinos usados pela divindade mitológica é uma que não apenas se pronuncia na cena mas também encontra harmonia com tudo que foi e será mostrado no longa. Há uma razão muito simples por trás deste desbunde: as vestimentas usadas por Chang’e foram desenhadas por Guo Pei, renomada estilista chinesa que tem longa carreira no mundo da moda e bastante conhecida do público ocidental pelo design do longo vestido amarelo trajado por Rihanna no baile de gala do Met de 2015.
Escolher alguém do porte de Guo Pei para a confecção dos figurinos de uma única personagem é uma decisão criativa importante e que deriva do reconhecimento de um grau de desafio que escapa ao comando – uma constatação que o diretor Glen Keane admite de primeira quando se tratando do tema. “Tudo que envolveu Chang’e foi um desafio” relembra o diretor ao B9; “A gente não apenas estava abordando uma deusa que é parte de uma área sagrada da cultura chinesa como íamos gira-la de ponta cabeça e torná-la numa espécie de Katy Perry ou Lady Gaga nuclear. Nós tínhamos que devolvê-la de uma maneira respeitosa, até em melhor condição do que ela estava quando a tomamos emprestada”.
A opção de Keane e a produção por buscar uma estilista renomada para focar no trabalho de figurino pode soar hoje como um caminho natural para uma animação em 2020, mas é curioso perceber como há uma década isso seria considerado um ato impensável. Embora os avanços da tecnologia de animação tridimensional hoje possibilitem uma riqueza de detalhes suficiente para que mais departamentos tradicionais do audiovisual sejam criados na área, não faz nem cinco anos que a indústria – ainda mais Hollywood – conta com discernimento suficiente da variedade de profissionais por trás da denominação maior do “animador” a ponto de perceber o valor de uma figurinista dentro de um projeto do tipo.
Não há melhor histórico que demarque esta mudança que o Oscar. Por mais que reconheça há 30 anos o gênero da animação como digno da indicação ao prêmio principal, só foi em 2016 que a premiação ousou nomear uma produção da área numa de suas categorias efetivamente “artísticas” da lista, fora do eixo técnico representado por som (caso de “Up: Altas Aventuras” e “Os Incríveis”), roteiro (“Toy Story 3”), canção e trilha sonora (“A Bela e a Fera” e outros tantos filmes da Disney).
Além de marcar a primeira ocasião em que um longa animado foi consagrado com uma indicação ao prêmio de figurino, a lembrança de Deborah Cook e de seu trabalho em “Kubo e as Cordas Mágicas” também foi simbólico do reconhecimento da indústria sobre as diferentes possibilidades de trabalho dentro do segmento. Um animador pode ser responsável por como um personagem existe e se movimenta, é verdade, mas há também alguém responsável pela criação do cenário que ele passeia, o frame que registra a cena, os ambientes ao redor e sim, as roupas que eles vestem.
Quem sabe muito bem da importância desta diferenciação e do trabalho envolvido no departamento é Guo Pei. “O figurinista pode revestir o personagem com um maior senso de design e trazer maior realismo ao figurino de uma perspectiva profissional de silhueta, material, cor e por aí vai” escreve a estilista em uma entrevista por e-mail ao B9, onde também define que o mais importante ao se trabalhar no cinema é compreender “a estrutura da história, da emoção e da personalidade dos personagens, assim como o que acontece com eles”. E isso pelo visto só se torna mais vital quando tudo é realizado a partir de tecnologia tridimensional visual e digital:
A animação acompanha nosso crescimento de geração para geração, e é o que preserva nossas preciosas memórias de infância. Chang’e é uma lenda antiga chinesa que eu cresci ouvindo sobre. Sem dúvida representa uma chance especial a mim desenhar os seus figurinos em ‘A Caminho da Lua’.
Guo Pei
É verdade que Guo Pei já havia trabalhado no cinema antes – ela foi responsável por todas as vestes de dois blockbusters chineses com pé no fantástico, “A Lenda do Rei Macaco: Tumulto no Reino Celestial” e o recente “Contos do Caçador de Sombras” – mas sua atuação na animação da Netflix, ainda que limitada a única personagem, é tão ou mais complexo que qualquer outro projeto que ela tocou na área. A estilista colaborou de maneira bastante próxima a Glen Keane e sua equipe no processo de conceber os figurinos de Chang’e, com ela não apenas desenhando peças e trazendo padrões como orientando as formas pelas quais aqueles tecidos deveriam ser “costurados” digitalmente – algo que levava em conta até mesmo o ambiente espacial da premissa.
“Ela desenhou aquelas roupas com um tecido que era uma espécie de super seda. Era além de qualquer coisa que você encontra na Terra” diz Keane, que ainda comenta que a figurinista “amava a ideia”, aplicada ainda em uma modelo de proporções cósmicas – Chang’e tem quase três metros de altura na história. “Ela me enviava os designs e eu devolvia a ela alguns rascunhos, e aí ela nos dava alguns padrões” relembra.
Apesar das condições fora da realidade, porém, Guo Pei revela não perceber diferença entre o trabalho que faz para a animação e os que conduz “para pessoas reais”. “Eu nunca penso o trabalho de figurino como apenas sobre fabricar um pedaço de tecido. É mais importante expressar a emoção por trás do design” escreve ela, de forma bastante franca; “Embora a Chang’e seja uma personagem mitológica ela tem sua própria história e emoções, e eu precisava as expressar através de suas roupas”.
Embora Guo Pei seja bastante prática quando o assunto é tratar dos elementos da personagem que foram chave para a concepção de suas vestimentas – em suas próprias palavras, “tornar as roupas mais adequadas à personagem” – Keane verbaliza muito da poesia inscrita no trabalho da estilista e como este se relaciona com o mito do amor perdido da deusa, Houyi. “Chang’e veste o amor dela por Houyi, sua roupa é uma representação física de seu amor” afirma o diretor; “Para as vestes reais, ela desenhou na frente estes pássaros macho e fêmea interligados que representam as vidas conectadas dos dois. Nas costas, há a imagem de um Sol porque Houyi, seu amante, dispara na lenda uma flecha contra o astro, mas ele está numa parte do robe que ela nunca vê”.
Guo Pei também nota que a tradução da personagem de uma perspectiva tradicional para uma mais moderna se tornou importante em seu processo criativo. Tudo é levado em conta nesta hora – da percepção da deusa como estrela do rock ao ambiente da lua, que adiciona uma “energia especial” na hora de dar um quê futurista às vestes – mas é a estrutura da história de Chang’e na narrativa que permitiram que os figurinos “nascessem naturalmente”: “A história de Chang’e lidera tudo isso, porque todo o design é criado para Chang’e” completa.
São estes níveis de detalhe que estão presentes em todas as 16 páginas de designs enviadas pela estilista à equipe do filme, com ela se preocupando até mesmo em desenhar partes interiores de alguns dos figurinos. Ainda que o time de Keane tenha cuidado de adaptar os modelos a todos os diferentes tipos de animação usados em “A Caminho da Lua”, Guo Pei manteve comunicação com o diretor por meio de videoconferências durante toda a produção – mas a lembrança mais forte de ambos nesta verdadeira dinâmica criativa foram os primeiros encontros ao vivo.
“Guo Pei sempre quis ser uma animadora, e eu amo a ideia de ser um figurinista, então durante este filme nós tivemos a chance de se conectar um com o outro” diz Keane; “Ela não sabe falar inglês e eu não sei nada de chinês, mas nós dois sabíamos nos comunicar a partir do desenho – digo, era nossa língua. O marido dela a certa altura serviu como tradutor para nós, mas uma hora ele se levantou e foi embora porque nós dois passamos uma hora ‘conversando’ por rabiscos”.
Se esse momento foi crucial para o diretor materializar partes importantes da animação – “Durante tudo o que a gente animou, os designs fluídos de Chang’e eram lembranças minhas dos movimentos de mão de Guo Pei” chega a dizer – a figurinista relembra o momento como uma conexão impressionante em todos os sentidos: “Nós expressamos nossas expectativas sobre a imagem de Chang’e através do desenho com apenas papel e caneta”, diz.
Todo este enorme processo em torno dos figurinos da personagem diz muito sobre o grau de importância que sua imagem tem nos caminhos de “A Caminho da Lua”. A relação entre Chang’e e Fei Fei é a chave para a compreensão de toda a narrativa de luto do filme, com o drama da protagonista para superar a morte da mãe se materializando de certa forma naquilo que ela projeta sobre a divindade mitológica de Lunária.
Por conta disso, o grande espetáculo que introduz a deusa na história acaba por ser crucial aos rumos do filme não apenas por seu impacto pop, mas também por ajudar a reposicionar a expectativa do espectador – um processo que com naturalidade começa pelas roupas da personagem. “Quando a Chang’e se apresenta como uma estrela do rock, ela possui o design de uma saia gigante. É bastante misterioso e muito consistente com a imagem superior dela como uma deusa.” escreve Guo Pei; “Mas depois que ela começa a dançar, a saia se transforma em uma mais curta com um desenho cheio de camadas, completando sua transição para o papel de estrela. Isto é para adaptar o desenvolvimento emocional da trama, mas também apresentar a nova imagem da Chang’e no filme”.
“A Caminho da Lua” está disponível no catálogo da Netflix.