- Cultura 7.nov.2019
Em “Parasita”, o capitalismo se traduz numa guerra por espaços
Vencedor da Palma de Ouro vai da sátira ao horror para trazer à tona os sentimentos mais desesperadores do mundo contemporâneo ao espectador
Poucas coisas sintetizam tão bem os objetivos de Bong Joon-ho com “Parasita” que a maneira como as duas residências principais da trama são apresentadas ao espectador no filme. De um lado, há a casa da família pobre de Kim Ki-taek (Song Kang-ho), cuja localidade no sótão, corredores estreitos e teto rebaixado sufocam a câmera ao ponto de forçar a montagem a recorrer a planos estáticos e muitos closes nas atividades de seus personagens; já na mansão de Park Dong-ik (Lee Sun-kyun), Bong não hesita em ilustrar a vastidão do espaço disposto em longas sequências, dando conforto suficiente ao espectador para trafegar junto da câmera – e dos personagens – pelos halls e escadarias amplas.
Este forte contraste visual, explícito desde o início e o qual acompanha a jornada dos personagens até seus respectivos fins, é um arranjo que sem dúvida ajuda o longa a manter sua integridade perante o tanto de fases que passeia durante o curso de sua trama, mas é também parte essencial da engenhosa estrutura elaborada pela narrativa por manter o público consciente a todo instante daquilo que soa como cerne de sua proposta. Estamos diante, aqui, de uma luta territorial por vazios, espaços livres cuja liberdade de movimento não apenas define o posicionamento de Bong com a câmera, mas a própria existência física dos personagens – e em tempos tão digitais, nada pode chamar a atenção do espectador mais disperso a este jogo perverso que uma busca por sinal de celular.
Como a dinâmica alegórica ao qual serve, este registro de territorialidades não é exatamente uma novidade no cinema de Bong – que, nas diversas entrevistas nas semanas e meses posteriores à entrega da Palma de Ouro ao projeto e sua estreia nos circuitos ao redor do globo, chegou a brincar com as semelhanças entre o filme e o seu “O Expresso do Amanhã” – mas em “Parasita” sua primordialidade reforça de forma prática na estrutura o quanto a história reside em valores maiores, efetivamente materializando na tela a conversão dos personagens como peças de um quebra-cabeça a ser desvendado pelo espectador, receptáculos de uma alegoria essencialista ao qual o público se submete na busca por verdades interiores. É um jogo duplo, aliás, que reflete a própria condição mutante da produção, cujo passeio da comédia de modos aos terror de enclausuramento se dá pelas vias da história de assalto justo para acentuar esta via de mão dupla do roteiro escrito pelo diretor e Han Jin-won.
É da natureza dúbia sobre os elementos, afinal, que a produção tece diante dos olhos do espectador uma estruturação maior das mecânicas do capitalismo contemporâneo, que atua na história como mal não visto (e, portanto, não percebido) dos personagens. Mas embora a tão alardeada verticalização da narrativa seja fundamental para se navegar pelos meandros do longa, ela no fundo atua menos como fator organizacional que motivacional da família de protagonistas, cuja sede em alcançar patamares maiores da sociedade os leva a se infiltrar na mansão citada para obter (mesmo que por vias tortas) o conforto desfrutado pelos poderosos.
O capitalismo contemporâneo atua na história como mal não visto (e, portanto, não percebido) dos personagens
A Bong, porém, interessa apenas os espaços ocupados pelos personagens, e é isto que torna “Parasita” tão intrigante em seus propósitos. Na contramão de contemporâneos do cinema sul-coreano (cuja dependência em roteiros cada vez mais mecanizados nas reviravoltas se nota a cada produção), o cineasta aproveita cada novo fragmento de informação não como uma forma de chocar seu espectador, mas de tensionar as relações de seus personagens com os ambientes habitados a pontos de crise maiores e mais insustentáveis. A dicotomia entre a mansão e a casa-sotão obviamente é o que melhor expõe isso – as sequências envolvendo a chuva são claras na contraposição dos desconfortos – mas o filme se sai ainda melhor quando encontra momentos com a presença das duas famílias da história porque sua encenação do suspense reforça a dualidade de significados que um mesmo ambiente pode ter.
A sala de estar que atua como lugar de relaxamento discreto e esconderijo improvisado, a cozinha onde reside os funcionários e também o local de planejamento… tudo está aberto a novas interpretações na narrativa de “Parasita”. Até mesmo o enquadramento de gênero dado pelo espectador à produção é aproveitada pelo filme, que parte da sátira para chegar ao horror justo porque o caminho soa como melhor alternativa para fazer valer o impacto emocional planejado pela estrutura. Neste sentido, é curioso observar como mesmo a organização física da mansão atua na narrativa para reforçar esta multiplicidade identitária dos elementos de cena, com sua grande janela principal servindo tanto como convite ao aconchego de seu interior quanto grade silenciosa de seu enclausuramento – e o diretor é sagaz quando coloca a câmera por trás desta imensa vidraçaria para filmar a situação chave que determina o sucesso do plano traçado pela família de Kim Ki-taek para ocupar a casa.
Bong Joon-ho aproveita cada nova informação para tensionar as relações de seus personagens com os ambientes habitados
Mas se a multiplicação de sentidos rege os ditames da alegoria construída, qual é o objetivo final com esta estrutura? É neste momento que o longa talvez se mostre mais esperto, pois ainda que ensaie na reta final a alusão direta ao comentário crítico e social (uma parte ainda muito importante, por justamente expor ao público mais desatento a natureza real do aparato com a trama) ele no fim não deixa de perder de vista sua filiação ao conto, um formato que além de despi-lo da necessidade de entrega de desfechos moralizantes – ainda que este exista e seja bem colocado na relação de desprezo da elite pelas camadas baixas, exposta sem sutilezas na questão do cheiro – o permite também se manter centrado numa vocalização de dores que surge no desfecho como razão de existência maior de sua narrativa.
O ato de levar o filme a um fim de natureza tão melancólica, vale acrescentar, é a manobra mais arriscada que Bong realiza neste trabalho, mas acaba sendo também a sua mais fortuita. Ao conduzir “Parasita” pelo terreno do onírico, materializando desejos apenas para reforçar lamentos, o diretor enfim traz à tona na obra o que é talvez o traço mais importante da constituição presente do sistema sobre o qual discorre: as dores das falsas esperanças.